A guerra de Donald Trump contra a Justiça dos EUA
A resistência do governo estadunidense diante de uma ordem judicial contrária à deportação evidencia que a administração do republicano está disposta a travar uma batalha para desafiar o Poder Judiciário
Nesta quarta-feira (19), um juiz federal alertou sobre a possibilidade de "consequências" depois que o Departamento de Justiça do governo Trump rejeitou seu pedido de mais informações sobre os voos de deportação que decolaram no fim de semana para El Salvador.
O magistrado distrital James E. Boasberg ordenou que a Casa Branca respondesse a várias perguntas sob sigilo, onde as informações não seriam expostas publicamente. Entre os questionamentos constavam pedidos de informação relativos aos horários de decolagem e pouso das aeronaves e o número de pessoas deportadas.
A decisão judicial determinava que o governo Trump apresentasse as respostas até o meio-dia desta quarta-feira. Contudo, o Departamento de Justiça apresentou somente um documento pela manhã sustentando que se tratavam de "graves invasões em aspectos essenciais da autoridade absoluta e irrevisável do Poder Executivo relacionadas à segurança nacional, relações exteriores e política externa".
O departamento disse ainda que estava considerando invocar o "privilégio de segredos de Estado" para permitir que o governo retivesse algumas das informações, pontuando que a premissa subjacente da ordem era de que "o Poder Judiciário é superior ao Poder Executivo, particularmente em questões não legais envolvendo relações exteriores e segurança nacional. O Governo discorda”.
Na sua resposta às argumentações da administração federal, o magistrado questionou como fornecer as informações ao tribunal poderia “colocar em risco segredos de estado”, já que autoridades do governo teriam divulgado publicamente muitos detalhes sobre os voos. E sobre a alegação de que o juiz não teria autoridade para emitir sua decisão, Boasberg foi direto: o procedimento adequado para o governo é "revisão de apelação, não desobediência".
Enfrentamento com a Justiça
Trump e seu entorno foram para o embate. Além da ausência de respostas sobre o pedido de informações de Boasberg, o juiz foi alvo de um pedido de impeachment movido pelo deputado republicano do Texas Brandon Gill nesta terça-feira (18). O magistrado havia bloqueado o uso do Alien Enemies Act (Lei dos Estrangeiros Inimigos) pelo presidente dos EUA, que invocou a norma para deportar imigrantes ilegais e supostos membros de gangues criminosas.
Em uma postagem na sua rede Truth Social na manhã de terça-feira, Trump detonou Boasberg, nomeado pelo presidente Barack Obama, o chamando de "lunático de esquerda radical". "Este juiz, como muitos dos juízes corruptos diante dos quais sou forçado a comparecer, deveria ser IMPECHADO!!!"
Após a publicação e da iniciativa do parlamentar republicano contra Boasberg, um juiz da Suprema Corte nomeado por George W. Bush, John Roberts, veio a público dizer que “por mais de dois séculos, foi estabelecido que o impeachment não é uma resposta apropriada para discordâncias relativas a uma decisão judicial”, acrescentando que “o processo normal de revisão de apelação existe para esse propósito”.
Lei de 1798
A lei federal usada pelo republicano faz parte de um conjunto legislativo chamado Alien and Sedition Acts, aprovado em 1798 durante a presidência de John Adams. A legislação foi criada em um contexto de tensão entre os EUA e a França. Ou seja, trata-se de uma lei de guerra, usada anteriormente somente três vezes durante conflitos armados.
O fato de Trump invocar uma norma tão antiga, buscando estabelecer do ponto de vista formal um cenário de guerra inexistente, mostra o ímpeto autoritário de alguém que não quer respeitar o devido processo legal.
"O presidente proclamou falsamente uma invasão e incursão predatória para usar uma lei escrita para tempos de guerra para a aplicação da lei de imigração em tempos de paz", aponta Katherine Yon Ebright , advogada do Programa de Liberdade e Segurança Nacional do Brennan Center à NPR.
A última vez que se invocou o Alien Enemies Act foi durante a Segunda Guerra Mundial, para colocar milhares de pessoas de ascendência japonesa, alemã e italiana em campos de concentração. O governo estadunidense se desculpou formalmente por isso décadas depois.
"A história mostra os riscos", diz Ebright depois que Trump invocou o ato. "Os tribunais deveriam acabar com isso."
Impeachment
Como aponta esta matéria do Axios, legisladores republicanos lançaram uma enxurrada sem precedentes de peidos de impeachment, o que o site define como "uma ruptura gritante com a tradição", já que até agora os magistrados alvos desse tipo de iniciativa haviam sido acusados ??principalmente por má conduta pessoal grave, corrupção financeira ou outros crimes graves.
Para remover um juiz, seria necessário o voto de todos os republicanos do Senado e pelo menos 14 democratas teriam que acompanhá-los, o que torna uma eventual aprovação virtualmente impossível. Mas o objetivo não é este, e sim expor os magistrados publicamente ao ódio de extremistas e buscar coagir outros a não enfrentarem o governo.
Além de Boasberg, o juiz Paul Engelmayer, do Distrito Sul de Nova York, teve seu impedimento pedido por congressistas republicanos depois de emitir uma decisão em fevereiro bloqueando o acesso do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), liderado por Elon Musk, aos registros do Departamento do Tesouro com dados pessoais confidenciais.
John Bates, do Distrito de Columbia, foi vítima da mesma estratégia após ordenar que o governo Trump restaurasse os sites das agências de saúde fechados por uma ordem executiva que reprimia a Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI). O deputado republicano Andy Ogles, do Tennessee, acusou o magistrado de "conduta tão completamente desprovida de honestidade intelectual e integridade básica que o torna culpado de crimes graves e contravenções".
Já Adam Abelson, do Distrito de Maryland, determinou, em fevereiro, o bloqueio de uma ordem executiva de Trump para encerrar todo o financiamento federal para programas que promovam DEI, e foi alvo de um pedido de impeachment do republicano Eli Crane, do Arizona, e ainda foi exposto em uma publicação no X que contou com o endosso do perfil de Elon Musk.
Novos juízes
O constrangimento, no entanto, não é a única arma de Trump. Ele está preparando uma nova lista de indicados conservadores para o Judiciário, onde o alinhamento ideológico e a lealdade são prioridades sobre o que seria um "saber jurídico" utilizado para as nomeações.
Como o Partido Republicano tem maioria no Senado, com 53 assentos, e a Câmara aboliu a regra que exigia que os indicados judiciais passassem por um limite de 60 votos para avançar para a confirmação final, a aprovação de mais de 200 juízes federais, com a perspectiva ainda de reforçar a maioria conservadora na Suprema Corte com três novos juízes, é praticamente certa.
“Acho que eles serão mais ideologicamente extremos, na periferia do que costumava ser o Partido Republicano”, aponta o senador democrata Richard Blumenthal, membro do Comitê Judiciário do Senado, ao site Politico. “Eles serão MAGAs, basicamente. Dada a tendência do fim do último mandato de Trump, estamos indo para um precipício em termos de visões de direita marginal. Eles terão um teste decisivo com esteroides.”
Não são os primeiros conflitos de Trump com a Justiça dos EUA e não devem ser os últimos. O Poder Judiciário tem ganhado relevância no cenário político do país, e não é à toa. Boa parte das decisões do presidente republicano são, no mínimo, controversas do ponto de vista legal, alguns "dribles" no ordenamento jurídico e outras ações são simplesmente desrespeito e afronta. Com o Partido Democrata ainda sem rumo e sem uma estratégia para confrontar o governo, o protagonismo aos poucos se desloca para os tribunais. O embate deve continuar.