Tensão no Oriente Médio

O que Trump propõe tem nome: limpeza étnica

Por mais insanas que possam parecer as intenções do presidente dos EUA em relação à Gaza, elas não podem ser ignoradas. E muito menos naturalizadas

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Jornalista formado na ECA-USP, colaborador do Outras Palavras, ex-editor-executivo do Brasil de Fato, ex-editor da Rede Brasil Atual e ex-âncora na TVT e Rádio Brasil Atual.
O que Trump propõe tem nome: limpeza étnica
Imagem da coletiva com Netanyahu e Trump. Reprodução

"Este é um teste jornalístico muito básico. Donald Trump declarou que a população de Gaza deve ser reassentada 'permanentemente'. Qualquer jornalista, qualquer meio de comunicação, que se recuse a chamar isso de limpeza étnica é uma vergonha total."

O autor deste pequeno texto, publicado no X, é Owen Jones, comentarista e ativista político britânico. E ele tem razão. Poucas vezes um chefe de Estado deixou de forma tão evidente o seu desejo de cometer um crime contra a humanidade como fez o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na noite desta terça-feira (4).

Ao lado do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, o republicano disse que “os EUA tomarão conta da Faixa de Gaza e nós faremos um trabalho com ela também”, pontuando que Washington seria responsável por reconstruir prédios destruídos e desmantelar “bombas perigosas não detonadas e outras armas”.

Trump acrescentou que cerca de 2 milhões de moradores da Faixa de Gaza seriam realocados para países vizinhos em uma fase de transição, indicando que eles não teriam o direito de retorno. “Simplesmente não dá para voltar. Se você voltar, vai acabar do mesmo jeito que tem sido por 100 anos”, afirmou.

O presidente dos EUA não compartilhou detalhes sobre como ele esperava que seu país assumisse o controle da faixa, mas durante a coletiva de imprensa, também não descartou o envio de tropas americanas.

“Essa não foi uma decisão tomada levianamente. Todos com quem conversei amam a ideia dos Estados Unidos possuírem aquele pedaço de terra, desenvolvendo e criando milhares de empregos com algo que será magnífico”, disse ele, como se se tratasse de uma propriedade privada que pudesse ser comprada, tomada ou um terreno baldio, e não uma nação ocupada.

Elogios de Netanyahu

Questionado sobre quem ele espera que viva na Faixa de Gaza se todos os palestinos forem realocados, o presidente dos EUA afirmou que "imagina" que "as pessoas do mundo" viverão lá, incluindo - veja só - palestinos.

As proposições do presidente estadunidense foram fartamente elogiadas pelo primeiro-ministro israelense. “Sua disposição de romper com o pensamento convencional — pensamento que falhou inúmeras vezes —, sua disposição de pensar fora da caixa com novas ideias, nos ajudará a atingir todos esses objetivos, e eu já vi você fazer isso muitas vezes”, disse ele.

“Você [Trump] vai direto ao ponto. Você vê coisas que os outros se recusam a ver. Você diz coisas que os outros se recusam a dizer. E depois que os queixos caem, as pessoas coçam a cabeça e dizem: 'você sabe, ele está certo'.”

Como lembra o jornalista Brett Wilkins, a transferência forçada de uma população por uma potência ocupante é um crime de guerra, conforme o artigo 49 da Quarta Convenção de Genebra. Esse crime já estaria sendo cometido por Israel na Cisjordânia, segundo a Human Rights Watch, com a expansão de assentamentos de colonos israelenses.

Ainda sob a ótica do direito internacional, os Regulamentos de Haia de 1907, conjunto de convenções internacionais que estabelecem normas e princípios para a condução da guerra e a resolução pacífica de conflitos, a propriedade pública da população ocupada (o que inclui terras, florestas e propriedades agrícolas) está sujeita às leis de usufruto. Um Estado ocupante só tem permissão para um uso muito limitado dessa propriedade. E o confisco da propriedade privada também é proibido. A Quarta Convenção de Genebra proíbe a destruição de propriedade privada ou estatal, “exceto quando tal destruição for tornada absolutamente necessária por operações militares”.

A limpeza étnica

Uma Comissão de Peritos das Nações Unidas, com mandato para investigar violações do direito internacional humanitário cometidas no território da antiga Iugoslávia, definiu a limpeza étnica em um relatório provisório como "... tornar uma área etnicamente homogênea usando força ou intimidação para remover pessoas de determinados grupos da área."

Em uma matéria da PBS, o professor de direitos humanos na Faculdade de Direito de Yale, James Silk, também fala sobre a limpeza étnica. “Sua motivação pode ser querer que as pessoas saiam, mas se ao fazer isso você pretende destruir o grupo, então também é genocídio”, disse ele. “O direito internacional carece de mecanismos de execução, ele exige a adesão de uma comunidade internacional. Claramente, não tem sido eficaz.”

O diretor-executivo do Comitê Árabe-Americano Antidiscriminação (ADC), Abed Ayoub, diz que a proposta de Trump de deslocar a população de Gaza e então assumir o controle do território é "aterrorizante", qualificando os comentários do presidente dos EUA como "insanos". Porém, ele ressalta que não devem ser menosprezados, enfatizando que o plano de Israel desde o início era realizar uma limpeza étnica em Gaza.

“Isso iria contra todas as normas e leis internacionais. Isso não é algo que seria permitido acontecer”, disse Ayoub à Al Jazeera.

Não há muitas dúvidas sobre as intenções de Trump nem sobre as consequências caso elas sejam colocadas em prática. A comunidade internacional assistiu quase impassível a um massacre contínuo em Gaza. Será que seguirá na mesma toada à beira de uma nova catástrofe?

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