TRAMA GOLPISTA

Existem militares "heróis" na tentativa de golpe?

Qual “defesa da legalidade” é possível para quem ainda não reconhece o golpe de 1964 como tal? Um negacionismo que afronta a democracia e não pode ser normalizado pela sociedade

Trama desenvolvida no governo Bolsonaro enfrentou oposição de alguns militares, mas foi por legalidade ou conveniência?Créditos: Marcos Corrêa/PR
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Antes do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes levantar o sigilo sobre o inquérito que investiga a tentativa de golpe de Estado no Brasil, por parte do entorno do então presidente Jair Bolsonaro (PL), outra notícia passou quase despercebida, um dia antes.

Após pedido feito em uma ação civil pública protocolada pelo Ministério Público Federal (MPF), o Comando do Exército se negou a mudar o nome da 4ª Brigada de Infantaria Leve de Montanha, sediada em Juiz de Fora (MG). A unidade é denominada “Brigada 31 de Março” e se refere não só à data oficial do início da ditadura em 1964 como também ao dia em que tropas lideradas pelo general Olympio Mourão Filho, chefe da unidade na cidade mineira, partiram dali em direção ao Rio de Janeiro para depor o presidente João Goulart.

O MPF também pedia que os militares da unidade fizessem um curso sobre o “caráter ilícito do golpe militar de 1964” e as conclusões da Comissão Nacional da Verdade a respeito do regime, o que também foi negado pelo Exército. “Não há necessidade de criação de qualquer novo curso para os integrantes da 4ª Brigada de Infantaria Leve Motorizada, tendo em vista que os assuntos relacionados aos temas dos direitos humanos constam na capacitação de seus quadros”, aponta o Comando, em sua justificativa.

Este nem de longe é um episódio trivial. As investigações da Polícia Federal sobre a trama golpista mostram não somente o envolvimento de militares da ativa e da reserva como também apontam para uma certa naturalidade em relação à discussão sobre ruptura institucional. A certa altura, em uma das mensagens trocadas com outro tenente-coronel, o ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, reclama: “Em 64 não precisou assinar nada”.

Tanto no caso de Juiz de Fora como no da organização criminosa investigada pela PF, fica evidente que existe uma noção deturpada a respeito do golpe de 1964 e do próprio papel das Forças Armadas na vida republicana do país. Acostumados a interferir em diferentes graus na vida pública e institucional brasileira, os integrantes da caserna têm uma percepção de democracia no mínimo peculiar, atribuindo às Forças Armadas o papel de Poder Moderador que poderia intervir em casos de crise ou conflito de Poderes.

É sintomático ter sido achado em poder do Coronel Peregrino, assessor de Walter Braga Netto, um documento intitulado “Minuta 142”, referência ao artigo da Constituição invocado pelos militares para justificar essa suposta carta-branca de intromissão. A maciça maioria dos juristas sempre rejeitou a tese e, em abril deste ano, o STF foi assertivo. “A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se de seu âmbito qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República.”

Nada disso parece valer para quem se acha acima dos Poderes constituídos, inclusive do próprio Judiciário. E, diante deste cenário, é pouco crível a tentativa de “separar o CPF do CNPJ”, como dizem comentaristas da mídia corporativa. O DNA das Forças, como instituição, está na raiz do golpismo.

Golpismo arraigado

A versão que parte da mídia corporativa quer passar é que o golpe só não avançou ainda mais, a partir de suas tratativas, por que não foi possível conseguir a adesão de dois dos três comandantes do alto escalão militar: o general Marco Antonio Freire Gomes, comandante do Exército, e o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, líder da Aeronáutica. Já o almirante Almir Garnier (comandante da Marinha) “se colocou à disposição”.

Ambos teriam sido instados a participar da trama em reuniões com o próprio presidente Jair Bolsonaro e, em outras ocasiões, pelo ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, com o então candidato a vice na chapa do PL, general Braga Netto, determinando ataques pessoais aos dois por meio das chamadas milícias digitais.

Ambos têm sido tratados como heróis (e este termo foi utilizado de fato) por alguns jornalistas e outras figuras públicas. O fato de terem sabido que um golpe estava em andamento e nada terem dito a ninguém ou comunicado às autoridades policiais não seria prevaricação, mas sim um cuidado extremo em função de um momento delicado no qual alguma fagulha poderia incendiar o palheiro.
Contudo, eles também não falaram a respeito de forma espontânea, mesmo depois de Bolsonaro não estar no poder e do 8 de janeiro já ter passado. Só quando foram convocados como testemunhas resolveram dizer o que sabiam.

É bom relembrar como os dois, com Garnier, chegaram ao mais alto posto da carreira militar. A posse aconteceu depois de uma inédita saída tripla do comando das Forças em 30 de março de 2021, quando saiu também do Ministério da Defesa o general Fernando Azevedo e Silva. Junto com Braga Netto, o trio foi promovido porque seria mais alinhado ao presidente do que os ocupantes anteriores.

Em dezembro de 2022, como dito aqui, Baptista Junior tinha a pretensão de deixar o cargo no dia 23, antes da posse de Lula, o que gerou um princípio de crise naquele período de transição. Os três comandantes teriam combinado deixar o cargo antes, em uma manobra que teria sido acertada em uma reunião no Palácio da Alvorada com Bolsonaro. À época, a iniciativa foi vista pelo futuro governo como um sinal de insubordinação, já que seria uma recusa dos chefes das Forças Armadas de prestarem continência a Lula. Após o clima tenso, a transmissão de comando do Exército foi antecipada para o dia 30 e as da Marinha e Aeronáutica aconteceram no dia 2 de janeiro. Uma evidente demonstração de insatisfação, usando-se a instituição para, quem sabe, mobilizar ainda mais aqueles que não aceitavam os resultados das urnas.

Mas foi antes disso, em novembro de 2022, que ocorreu um episódio ainda mais emblemático. Os três comandantes assinaram uma nota conjunta intitulada “Às Instituições e ao Povo Brasileiro”, vista como um endosso aos acampamentos golpistas, uma crítica ao STF e uma justificativa pretensamente formal para a inação dos militares diante dos manifestantes que questionavam o resultado eleitoral na frente dos quartéis.

“A Constituição Federal estabelece os deveres e os direitos a serem observados por todos os brasileiros e que devem ser assegurados pelas Instituições, especialmente no que tange à livre manifestação do pensamento; à liberdade de reunião, pacificamente; e à liberdade de locomoção no território nacional”, dizia o documento. “Assim, são condenáveis tanto eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos, quanto eventuais excessos cometidos em manifestações que possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a segurança pública; bem como quaisquer ações, de indivíduos ou de entidades, públicas ou privadas, que alimentem a desarmonia na sociedade.”

A Polícia Federal encontrou um áudio enviado a Freire Gomes no qual ele ressaltava a importância da nota para a “manutenção e intensificação dos movimentos em frente aos quartéis e o deslocamento para o Congresso, STF e Praça dos Três Poderes”. Ao ser questionado sobre o áudio e a nota, o general respondeu que os comandantes tinham o objetivo de “passar uma mensagem de pacificação à população e às instituições”, entendendo que “precisavam dar uma resposta institucional à sociedade como um todo”.

Perguntado diretamente pela PF se o documento representava um respaldo para as manifestações dos acampados em frente às instalações militares, Freire Gomes respondeu “que tal interpretação foi dada de forma equivocada” e “que o objetivo era demonstrar que as manifestações não deveriam ocorrer em frente às instalações militares, e sim no âmbito do Poder Legislativo”.

Nada na nota sugeria isso e a intenção foi entendida de forma muito explícita na ocasião e nunca desmentida. Além disso, daquela vez, o texto não havia sido assinado pelo ministro da Defesa Braga Netto, e muitos entenderam como uma forma de ressaltar que se tratava de um posicionamento institucional das Forças. E, de fato, era. O professor Eurico Lima da Figueiredo, do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF) dizia ao Uol à época que “em uma democracia plena e consolidada, as Forças Armadas não têm de fazer declarações nem pronunciamentos, pois são instituições de Estado e mudas, no sentido de que cumprem seus deveres constitucionais”.

Sobre a mídia e legalismo

Por isso, quando um profissional da imprensa tradicional fala em “militares legalistas”, é bom desconfiar. Quem não aderiu ao golpe foi por amor à legalidade ou por uma questão de cálculo? Se foi por amor à Constituição, qual o motivo de não denunciar depois?

A propósito, muitos militares de alta patente utilizam jornalistas e veículos de comunicação como verdadeiras correias de transmissão onde conseguem vazar informações e, na maior parte das vezes, opiniões pouco embasadas sobre assuntos de seu interesse (e outros que não deveriam ser). No grave caso de uma trama golpista, não valia fazer o mesmo?

E é necessário ainda avaliar o que as Forças Armadas entendem por “legalismo” se o golpe de 1964 não é até hoje chamado pelo seu nome na caserna e se o entendimento do conceito de “democracia” é tão fluido que passa a comportar até mesmo a perspectiva de ruptura institucional.

A ausência de uma Justiça de Transição efetiva e a histórica estrutura autoritária da sociedade brasileira não permitiram a devida responsabilização dos artífices e dos personagens do regime ditatorial e o direito à memória e à verdade também foram e são prejudicados até hoje, ainda mais quando se tenta relativizar o que foi a ditadura como fazem veículos ao falarem de “ditabranda” e jornalistas que seguem na mesma linha. Tratar o extremismo como se fosse parte da paisagem ou do jogo político comum é um passo adiante na normalização das tentativas de assalto ao regime democrático.