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Qual é a pior dor que existe?
Ô, assunto besta!
Mas me lembrei disso ao constatar, com um exame de ultrassom, que mais uma vez estou com cálculo renal, a popular “pedra no rim”. Por enquanto, ela não se mexeu e continuo sem dor, mas com um esforço qualquer que eu faça, ela pode se deslocar e aí a coisa é braba.
Na primeira vez que tive, e que os médicos demoraram a identificar o que era, pois não havia ultrassom, e eu tive que ficar um bom tempo tomando remédio pra dor.
A dor “cultuada” como a pior de todas, durante muito tempo, foi a do parto. Mas já não se fala tanto dela, talvez porque tornou-se comum o uso de anestesia nos partos (o que é plenamente justificável), e muita gente recorre à cesariana. Pouco se fala de dor do parto hoje em dia. E mesmo antes, muitos que tiveram a maldita pedra no rim diziam que esta é a pior dor.
Eu, apesar de ter duas vezes passado por isso (e com expectativa de ter que encarar uma terceira vez), comprovo que é uma barra mesmo, mas digo sempre: a pior dor é que a gente tem no momento. Uma pessoa com dor de dente, um apêndice estuporado, uma fratura exposta ou qualquer coisa por aí, não vai se preocupar com dor do parto ou provocada por pedra no rim. A dor que se sente no momento é que é a pior, a que incomoda.
E isso tudo me leva a outro assunto: a crise.
Qual é a pior crise que há ou que houve?
Vale a mesma coisa: é a que a gente (ou o país) está passando. Não interessa que houve crises piores. Para quem é jovem, então, e não passou por outras crises, dizer que já houve crise pior no país parece defesa do governo, tentativa de justificar o injustificável.
A crise que passamos é horrorosa, sim! E não adianta tentar justificar. A oposição tem parte da culpa? Tem. A imprensa contribui para o pessimismo geral? Contribui. A base política do governo tem culpa também? Ô, se tem! A sensação que se tem é que o governo está perdido, e o que grupos capitalistas querem é se aproveitar da crise para lucrar mais e que a oposição quer torná-la pior do que já está, para ganhar as próximas eleições.
O certo é que não dá para ignorar os efeitos da crise na vida de muitos brasileiros. Seria sadismo ou coisa pior.
Crises passadas
Pensando nisso, e sem querer justificar nada, nem defender ninguém, fiquei me lembrando das crises pelas quais passei (e sobrevivi — espero sobreviver a esta também).
1. Numa cronologia de trás pra frente, a primeira que me lembro é a que ocorreu no segundo mandato do governo FHC, final da década de 1990. Empresas fechavam, o desemprego só aumentava, havia um desencanto geral, falta de perspectiva, ninguém achando que poderia melhorar de vida num futuro próximo. As pessoas mais otimistas tinham esperança de simplesmente não terem uma piora no padrão de vida... Parece hoje, hein? Só que ele tinha uma mídia a favor e um monte de comentaristas de economia defendendo que aquilo tinha que acontecer: estávamos iniciando uma nova era, de globalização, reengenharia de empresas e outras coisas do gênero.
O povo estava mal? Sim... Mas só parte dele, garantiam. E seria coisa passageira, juravam. Mas para quem estava ferrado não interessava nada dos motivos. E de que adiantava ser crise passageira se a gente não sobrevivesse a ela? O que valia era o “meu” desemprego e o dos meus amigos e familiares. E também a “minha” falta de grana. Só que o pessimismo geral não era tão propagandeado pela mídia. Eu mesmo conheci um pouco da dureza disso: várias revistas da Editora Globo foram fechadas por causa da crise, muitos jornalistas foram demitidos, inclusive eu.
2. Voltando um pouco, teve uma baita recessão na fase final da ditadura. Era 1983. Mais uma vez fiquei matando cachorro a grito, pegando um trabalhinho mixuruca aqui e outro ali, para pagar o aluguel e outras despesas. No fim de novembro, enfim, me apareceu um emprego na área de promoção social da prefeitura de Osasco.
E o emprego que arrumei tinha a ver com a crise: no início de 1983, existiam 15 favelas no município de Osasco. Em novembro eram 75. Com a recessão, muita gente ficou sem dinheiro e a saída foi morar em favela. Assim, muitos terrenos públicos e privados foram ocupados.
Só que quem estava saindo de uma vida “normal” para morar em favela era um pessoal desunido, desorganizado, sem tradição de união nem de lutas. Assim, não sabiam nem reivindicar alguns direitos. E sem união, eram vítimas de bandidos, marginais que se tornavam xerifes das favelas, que se instalavam ali e passava a cobrar “pedágio” dos moradores. Com medo dos marginais e sem se unir com outros moradores para se defenderem, os novos favelados se submetiam ao “xerife”.
A prefeitura de Osasco era governada pelo PMDB (ainda não havia o PSDB), e o pessoal que trabalhava na promoção social de lá era um grupo que queria realmente melhorar as coisas. Parte desse grupo, mais tarde, virou tucano. Na época, eu era filiado ao PT e, quando me chamaram para fazer parte da equipe que trabalharia na organização dos favelados, vacilei: usariam nosso trabalho para promover o PMDB? Garantiram que não. E cumpriram. Respeitaram minha opção partidária e eu respeitei a deles. Fizemos um trabalho político, sim, claro, tudo envolve política, mas não um trabalho partidário. Havia bons profissionais lá, éticos e competentes. Se não dava para resolver a crise, que não era municipal, pelo menos dava para minorar um pouco os efeitos dela. Foi feito de tudo para diminuir o sofrimento das vítimas da crise e também para evitar que as pessoas que estavam numa situação muito difícil caíssem na marginalidade. E os resultados foram bons, dentro das possibilidades.
3. Antes ainda... em 1966. Esta também foi uma crise terrível. Até essa época não faltavam empregos em São Paulo. Antes do golpe de 1964, até um pouco antes de começarem a aparecer os efeitos sociais dele, os cadernos de empregos do Estadão nos domingos ofereciam milhares e milhares de empregos. Empresas anunciavam “vantagens” que davam aos funcionários, como aumento salarial duas ou três vezes por ano e sempre acima do determinado pelos acordos sindicais. Aí, começaram os resultados da política econômica implantada por Roberto Campos, no governo Castello Branco. Submisso aos interesses do grande capital, o governo forçava pequenas empresas a “se unirem” a grandes, principalmente multinacionais, e com essa “união” eliminavam-se muitos e muitos postos de trabalho.
Na verdade, o governo ameaçava donos de pequenas e médias empresas nacionais a entregarem para o grande capital. Bancos considerados pequenos também foram engolidos pelos grandes. Quem se recusasse a aceitar as novas regras do jogo, impostas pela ditadura, era vítima de uma perseguição fiscal implacável.
E veio um desemprego enorme!
Havia grandes diferenças de cultura e comportamento entre a população da época e a de uns tempos para cá. Uma delas era a questão da marginalidade. O sentimento de moralidade era fortíssimo. Nos tempos mais recentes, uma pessoa que passa por dificuldade às vezes cai na tentação de traficar drogas ou roubar. Na época isso era impensável. E não havia certas políticas sociais para abrandar um pouco a coisa. O sujeito que perdia o emprego e não conseguia outro, usava as reservas que tinha até o final, depois ia vendendo partes dos bens para garantir a sobrevivência. Lembro-me que a última coisa que alguns vendiam era a aliança de casamento. Depois disso, sem mais nada que pudesse vender e arrumar uma graninha para a sobrevivência da família, o que fazer?
Bem... Nessa época eu não perdi o emprego. Trabalhava no centro de São Paulo. Mas deixei de passar pelo Viaduto do Chá, especialmente na hora do almoço. Motivo: toda vez que passava por ali via uma multidão se aglomerando na beira dele, porque algum desesperado, sem dinheiro e morrendo de vergonha de não ter como sustentar a família, preferia morrer de verdade. Suicidava pulando do viaduto. Um horror.
Um antiexemplo maluco
Nova Resende, cidade onde nasci e morei até os 16 anos, tem hoje um monte de gente trabalhando na produção de lingerie. São dezenas de pequenas fábricas e ouvi dizer que elas garantem renda para cerca de duas mil pessoas, num universo de 16 mil habitantes. Mas a base da economia lá ainda é o café. Milhares de pequenas e médias propriedades produzem café fino, exportado para vários países.
A indústria de lingerie é recente. Até início deste século era praticamente só o café que sustentava a economia do município. E até hoje a “moeda” que circula lá é o café. O real é para pequenas coisas. Quando se pergunta a alguém quanto custou um carro, ele provavelmente vai responder: “oitenta sacos de café”. Quer vender uma casa? “Trezentos sacos de café”... e por aí vai.
Lá pelo início dos anos 1990, uma tragédia: uma geada acabou com os cafezais de Nova Resende. Instalou-se uma pindaíba geral, uma choradeira danada. Tornou-se comum ver fazendeiro andando meio desvairado, falando sozinho, todo mundo com a cara emburrada, sem saber o que viria no futuro e sem dinheiro para pagar suas dívidas, empréstimos bancários.
Uma pessoa destoava disso tudo: o Arnaldo andava assobiando, alegre, feliz da vida, como se nada de ruim estivesse acontecendo. Perguntado sobre o porquê disso, contou:
— Eu andava sem assunto, não tinha com quem conversar aqui. Ia falar com um roceiro qualquer, o assunto dele era Banco do Brasil, dólar, bolsa de Nova York, essas coisas de que eu não entendo nada. Ia conversar com outro, era a mesma coisa. Agora, não! Todo mundo fala coisa que eu entendo. É falta de dinheiro, é pescar lambaris... Acabou a mania de grandeza!
— Mas Arnaldo, e a miséria que vem aí?
— Nada, sô! A gente se acostuma. Encontrei ali atrás dois fazendeiros que antes só falavam em dólar. Sabe o que eles estavam fazendo?
— Hum-hum.
— Um tava breganhando um canivete velho com o outro, em troca de um pedaço de fumo.
Foto de capa: Quadro de José Ferraz de Almeida Júnior/Domínio Público