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Quando alguma pessoa que eu gosto parte desta para uma melhor, que espero que seja melhor mesmo, procuro me lembrar das coisas boas e divertidas que ela fez. Os índios de línguas do tronco tupi-guarani chamam o local para onde vão os mortos bons de “Terra sem Males”. Então, apesar de a gente ficar triste por perder uma pessoa amiga, faz bem pensar que ela está lá, numa boa, mesmo eu sendo materialista.
Minha amiga Léa Depresbiteris é uma que merece estar nesse lugar sem males. E vou me lembrar de algumas das muitas coisas divertidas dela.
Ela foi assaltada dentro do carro várias vezes num mesmo semáforo do centro de São Paulo. Numa dessas vezes, entregou o dinheiro ao ladrão, que ainda ficou falando alguma coisa, mantendo os dedos de uma das mãos em cima do vidro entreaberto. Para parar de ouvir a encheção do sujeito, ela fechou o vidro e os dedos de uma das mãos do assaltante ficaram presos entre o vidro e a parte de cima da porta. Nesse momento, o sinal abriu e ela foi saindo, com os dedos do assaltante presos. Se acelerasse, o sujeito seria arrastado pelos dedos, no mínimo quebraria alguns deles. O cara gritou, a Léa parou, abriu o vidro para ele tirar a mão e pediu desculpa.
– Devia ter arrastado o sujeito, quebrando os dedos dele – dizia muita gente. Mas esse não era o estilo dela.
Viajamos muitas vezes juntos, para o exterior e para o interior. A Léa com o marido, Mário, e eu com a minha mulher, Célia.
Muito novidadeira, ela sempre queria provar as coisas mais diferentes, principalmente comidas e bebidas com nomes sonoros. Antes de aprender a falar espanhol, na Argentina, num restaurante ela pediu para beber um licuado de durazno e eu fiquei gozando: “Você pediu só por causa do nome, não é?”. Confirmou e disse não saber o que era. Contei que era suco de pêssego, ela riu, bebeu e confirmou que era mesmo.
Em Cochabamba, comprou folhas de coca para mascar, como faziam os índios. Na Bolívia, a gente tomava chá de coca direto (não tem nada a ver com cocaína), porque senão as consequências da altitude seriam trágicas. Mas mascar a folha exige prática: não se pode engoli-las, só fazer um “bolo” delas na boca e ficar engolindo o caldo. Ela engoliu as folhas e, para piorar, o pessoal que vendia coca eram cholas não muito higiênicas. Acho que tinha algumas impropriedades nelas (micróbios, bactérias...), e o resultado é que a Léa ficou com uma baita diarreia que nada curava. Durou vários dias. Chegamos a ir a um pronto-socorro em La Paz, mas não resolveu.
Na Espanha, queria chegar a Valência, e só quando chegamos soubemos por quê: queria tomar orchata de chufa. Desde que ouvira Caetano Veloso se referir a esse troço numa música que ela ficou com isso na cabeça. Chufa (ou xufa) é um pequeno tubérculo, e orchata (ou orxata) é um caldo leitoso e doce feito com a tal chufa.
Mas nessa viagem à Espanha quem deu uns foras não foi a Léa, foram o Mário e a Célia. Logo que chegamos a Madri, os dois queriam comer calamares, quer dizer, lula. Estavam fissurados. Achavam que a lula de lá tinha algo de especial.
No almoço, já chegaram ao restaurante falando sem parar, brincando:
– Calamares!!! Calamares!!!
Comemos calamares.
Para jantar, fomos a um outro restaurante. A Léa pediu alguma coisa que não me lembro, eu pedi uma carne, a Célia queria algum peixe e o Mário também. Abriram o cardápio na página de “pescados” e perguntaram ao garçom o que eram setas.
– Es um pescado muy bueno...
Ele não sabia explicar direito o que era. Pediram assim mesmo... Era lula com cogumelo.
No almoço do dia seguinte, eu pedi não sei o quê, a Léa só quis um consomê, a Célia e o Mário se interessaram por um outro pescado muy bueno. Veio, era um outro tipo de lula, menorzinho. O certo é que lá pelo quinto dia de Espanha não aguentavam mais comer lula.
Tudo o que pediam, era lula. Nunca imaginei que pudesse existir tantos pratos com nomes diferentes à base de lula. Nem eles, que foram os novidadeiros muito gozados pela Léa e por mim.
Este artigo é parte integrante da edição 111 de Fórum