O debate atual sobre as biografias: contribuições desde o ponto de vista do conhecimento histórico
Por: Benito Bisso Schmidt*
Nas últimas semanas temos presenciado nos meios de comunicação um intenso (e por vezes agressivo) debate sobre as biografias. Na querela, de um lado, estão os biografados reais e potenciais, ou seus representantes, que advogam o direito à intimidade (previsto na Constituição Federal), a terem suas vidas resguardadas da curiosidade alheia e a receberem parte dos lucros advindos das vendas de publicações sobre suas trajetórias; de outro, biógrafos, ou seus representantes, reivindicam outro direito presente no texto constitucional, o da liberdade de expressão, e afirmam que a atual regulamentação expressa no artigo 20 do Código Civil, a qual prevê a anuência prévia do biografado ou familiares às narrativas biográficas, não só é inconstitucional como atualiza a censura tão praticada nos anos da ditadura civil-militar. Tal debate foi motivado por uma ADIM (Ação Direta de Inconstitucionalidade), interposta junto ao STF pela Associação Nacional de Editores de Livros (ANEL), relativa a esse artigo.
Obviamente, na polêmica, para além da discussão sobre direitos constitucionais, estão envolvidos grandes interesses econômicos, tanto da parte de biografados e herdeiros, quanto de biógrafos, editoras e meios de comunicação. Uma parcela das discussões também está centrada na atuação do Poder Judiciário em relação ao tema: para os defensores da liberdade de publicação, os possíveis deslizes éticos devem ser resolvidos a posteriori, caso o biografado ou seus representantes se sintam ofendidos com os trabalhos publicados (como acontece em quase todos os países do mundo ocidental); já para os que advogam a anuência prévia, essa possibilidade tem poucas possibilidades de concretização no Brasil onde, como sabemos, a Justiça é lenta e custosa.
Nestes embates, quem tem se manifestado do lado da inconstitucionalidade do artigo 20 do Código Civil são majoritariamente os jornalistas que, aqui como em vários outros países, são os principais produtores de biografias, as quais, em geral, se voltam para celebridade das mais diversas áreas (artes, política, esportes, etc.), normalmente com o objetivo de revelar, a partir de minuciosas pesquisas, segredos, pecados grandes ou pequenos, como também, em alguns casos, gestos heróicos ou que revelam o quanto o personagem estava “à frente de seu tempo”. De qualquer maneira, neste campo de produção, valem muitas das regras que igualmente imperam nas redações dos jornais: o imperativo da comunicabilidade, o desejo de fisgar o leitor e de revelar algo até então oculto, de expor um “furo” enfim. Muitos desses trabalhos se assentam em laboriosos processos de investigação que tem como culminância os rótulos de “a verdadeira biografia de cicrano” ou “a biografia definitiva de fulano”. Obviamente que desde esse ponto de vista a biografia dita “autorizada” já está, a priori, desacreditada, pois a autorização criaria restrições incontornáveis para que a “verdade” fosse revelada. Sobre isso, a jornalista Janet Malcon assinalou de maneira irônica: “Os familiares são os inimigos naturais dos biógrafos; são como tribos hostis que o explorador encontra e precisa submeter sem piedade a fim de se apossar do seu território” (In: “A mulher calada”. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 18).
Nas linhas que seguem, quero apresentar, de maneira bem geral, os contornos de outro campo de conhecimento onde as biografias são cada vez mais produzidas, a história acadêmica, de forma a contribuir ao debate indicado acima. De início, deixo claro que sou contra qualquer forma de censura prévia e a favor da liberdade de pesquisa e divulgação de textos biográficos, mas também sublinho que o biógrafo deve guiar sua atuação a partir de princípios éticos que tenham como horizonte a salvaguarda do biografado de prejuízos materiais e simbólicos.
Por muito tempo, a biografia foi considerada um gênero menor pelos historiadores, associada a uma história tradicional voltada para os heróis e para os grandes acontecimentos. Ao menos nas suas vertentes mais consistentes, a historiografia contemporânea dirigiu suas lentes explicativas às grandes estruturas, aos grupos sociais e à temporalidade da longa duração. Neste enfoque, ao indivíduo era reservada pouca atenção já que a ele se atribuía uma ínfima margem de participação no desencadear dos processos históricos. Entretanto, deste a década de 1980, pelo menos, se fala de uma “volta” da biografia ao centro do conhecimento histórico. Claro está que não se trata exatamente de um retorno, pois as biografias realizadas pelos historiadores atuais são bem diferentes daquelas feitas anteriormente, já que não têm como objetivo enaltecer ou desmistificar determinadas pessoas, mas sim evidenciar a margem de liberdade e de atuação dos indivíduos mesmo quando os constrangimentos estruturais parecem quase intransponíveis. Além disso, não se voltam apenas aos membros da elite, às pessoas conhecidas, mas também, e talvez, sobretudo, aos subalternos e desviantes, como escravos, operários, loucos, feministas, marginais de todo o tipo, etc. Deve-se igualmente ressaltar que os historiadores realizam suas pesquisas não com o intuito de desvendar segredos, mas sim de explicar historicamente os percursos de seus biografados, de pensá-los a partir de seus projetos e campos de possibilidade. Esses profissionais, igualmente, têm consciência que as explicações históricas, embora assentadas na pesquisa das evidências do passado, são provisórias e contextuais, e que, portanto, não se pode falar em biografias “verdadeiras” ou “definitivas”. Enfim, seu ponto de partida, seus métodos e seus compromissos são bem diferentes daqueles dos biógrafos jornalistas, o que não significa que seus trabalhos sejam mais ou menos importantes, apenas são diferentes por serem produzidos em lugares sociais diferenciados.
Saliento também que, cada vez mais, o presente é também o tempo dos historiadores (e não só dos cientistas sociais e dos jornalistas) o que repercute na produção de biografias, ou seja, muitos profissionais de História estão se voltando às trajetórias de personagens atuais, vários deles ainda vivos, o que nos insere com força no debate atualmente travado entre os defensores e os opositores à autorização prévia das biografias.
Para nós, historiadores, é imprescindível trabalharmos com total liberdade para as nossas pesquisas e para a elaboração de nossas narrativas. Por isso, a princípio, não podemos tolerar restrições prévias à investigação e à interpretação. Afinal, muitos trabalhos biográficos produzidos em nossa área têm se mostrado valiosos para compreendermos melhor determinadas facetas e problemas históricos que dificilmente seriam conhecidos com base em outras abordagens.
Porém, sabemos também como os nossos trabalhos podem ser usados com os fins mais diversos, inclusive para prejudicar determinadas pessoas. Por isso, precisamos, além de defender o fim das restrições prévias, assentarmos nossa produção em princípios éticos como o respeito pelos biografados. Nesse caso, insisto, é importante termos claro que as biografias praticadas por historiadores profissionais não visam a fazer vir à tona segredos antes escondidos, mas sim compreender historicamente os percursos de certos personagens, de modo a entender, por exemplo, o funcionamento de determinados mecanismos sociais e sistemas normativos, a pluralidade existente em grupos e instituições vistas normalmente como homogêneas, a construção discursiva e não-discursiva dos indivíduos, as margens de liberdade disponíveis às pessoas em diferentes épocas históricas, entre outras questões.
Ou seja, para o historiador em geral e para o historiador biógrafo em particular, não há, como sabemos, fatos importantes em si, que precisam ser revelados “doa a quem doer”, mas sim fatos que se tornam históricos se nos ajudam a responder os nossos problemas de pesquisa. Assim, desde o ponto de vista da pesquisa histórica acadêmica, as práticas sexuais de determinado personagem não são em si material a ser incluído em uma biografia, apenas se estivermos perguntando, por exemplo, sobre os padrões morais dos grupos dos quais ele participava.
A História Oral, por lidar com personagens vivos e que podem ter suas vidas prejudicadas pelas investigações realizadas, tem investido nessa discussão sobre os padrões éticos da pesquisa histórica. Encerro, então, com as palavras de um dos grandes expoentes dessa área, o italiano Alessandro Portelli:
“[...] compromisso com a honestidade significa, para mim, respeito pessoal por aqueles com quem trabalhamos, bem como respeito intelectual pelo material que conseguimos; compromisso com a verdade, uma busca utópica, e a vontade de saber ‘como as coisas realmente são’, equilibradas por uma atitude aberta às muitas variáveis de ‘como as coisas podem ser’. Por um lado, o reconhecimento da existência de múltiplas narrativas nos protege da crença farisaica e totalitária de que a ‘ciência’ nos transforma em depositários de verdades únicas e incontestáveis. Por outro, a utópica busca de verdade protege-nos da premissa irresponsável de que todas as histórias são equivalentes e intercambiáveis e, em última análise, irrelevantes. O fato de possíveis verdades serem ilimitadas não significa que todas são verdadeiras no mesmo sentido, nem que inexistem manipulações, inexatidões e erros” (In: Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética na História Oral. “Projeto História”, São Paulo, n. 15, abril 1997, p. 13-14).
LIBERDADE PARA AS BIOGRAFIAS, MAS SEM ESQUECERMOS A ÉTICA!
*Benito Bisso Schmidt: Professor do Departamento e do PPG em História da UFRGS
Benito Bisso Schmidt: A polêmica sobre biografias do ponto de vista do historiador
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