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As fraturas expostas pelo rompimento da barragem da Samarco em Mariana num país em constante desenvolvimento
Por Murilo Cleto*
Imagine, apenas por suposto, um candidato à presidência do Brasil que apresente, como plataforma de governo, um olhar atencioso sobre o passado. Imagine promessas de valorização do patrimônio histórico e cultural e planos concretos de preservação do meio ambiente. Imagine um candidato que não reproduza os velhos clichês a respeito do futuro, um futuro de progresso e desenvolvimento, de crescimento econômico e modernização. Só não imagine o seu destino nas urnas, provavelmente um fracasso retumbante.
Toda história nacional, sabe-se, é composta por uma trajetória de rupturas e permanências. E muitas foram as rupturas: golpes, redemocratizações, vanguardas artísticas e literárias, novos golpes, novas redemocratizações. Mas uma permanência manteve-se incólume desde pelo menos os oitocentos: o desenvolvimento.
No último dia 5, o rompimento de uma das barragens da mineradora Samarco em Mariana, Minas Gerais, expôs algumas das fraturas de um país em constante e sempre insuficiente desenvolvimento. Junto à lama que se alastrou por 943 longos quilômetros, dissipa-se também, no oceano Atlântico, e não sem incalculáveis prejuízos, uma biografia nacional em que o olhar para o futuro devastou o que encontrou pela frente. E sem a menor chance de resistência.
Já no final do século XIX, depois do “surto industrial” de Mauá, a República recém-proclamada ocupou-se em trucidar resistências internas que sequer ameaçavam a sua existência, mas, fundamentalmente, o desenvolvimento. Foi assim com Canudos e, anos mais tarde, com o Contestado. E não seria diferente com Getúlio Vargas, pai dos pobres, mas também mãe dos ricos e patrono de uma industrialização sempre tratada como tardia. Tão tardia que é somente nos "50 anos em 5" de Juscelino Kubitschek que as bases rurais e agrícolas do Estado, com investimento pesado em energia e transportes, convertem-se em urbanas e industriais, não sem os efeitos colaterais da inflação e do superendividamento.
Nos anos 1960, o grande dilema de um país que já não discutia mais a composição étnica da nação, como em 1920/30, era o seu, claro, desenvolvimento. Ou melhor, o seu subdesenvolvimento. Neste contexto Nelson Rodrigues lapidou a expressão “síndrome de vira-lata”, para descrever parte desta ânsia. Diante do menor sinal de ruptura deste processo civilizador, o golpe militar representou não a garantia da manutenção do projeto, mas a sua radicalização. Foi quando aprendemos na escola que o Brasil era um país “em desenvolvimento”. E ai de quem ousasse repetir, ainda que inconscientemente, os versos da canção de Carlos Lyra. Foi também quando entoávamos o coro de Pra Frente, Brasil, no embalo da conquista do tricampeonato mundial de futebol no México.
Durante os anos de chumbo, o Brasil atingiu os mais alarmantes índices de desigualdade, o preço a se pagar por uma modernização que não poderia ser para todos. Ali, quando o discurso oficial era o de fazer primeiro o bolo do “milagre econômico” crescer para depois dividi-lo, um dos maiores genocídios da história do país passou quase despercebido. Entre 1968 e 1983, durante a abertura da BR-174, que liga Boa Vista a Manaus, 2 mil Waimiri-Atroari foram assassinados. De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, ao menos 8350 indígenas caíram pelas mãos do Estado. Enquanto isso, o número oficialmente reconhecido de mortos pela ditadura não passa de 434.
[caption id="attachment_75976" align="alignright" width="423"] "Trata-se do maior desastre ambiental da história do país. E como ele, o país, tem reagido?" (Foto: Antonio Cruz/ABr)[/caption]
Há diversos motivos pelos quais esses massacres não são computados no cálculo de assassinatos promovidos entre 1964 e 1985. Mas, ao que tudo indica, as mortes de índios causadas pelos militares não são vistas como políticas porque o desenvolvimento nunca foi visto aqui como uma opção. Tanto é verdade que, depois da redemocratização, nada de novo no front. E mesmo o governo Lula, de notável redução da desigualdade no país, manteve a escrita. Desde 2008, o equivalente a 10% do PIB foi injetado pelo BNDES para acelerar o crescimento.
Neste sentido, Belo Monte parece ser a maior síntese desta permanência. Até julho deste ano, o Ministério Público já havia entrado com 23 ações diante das irregularidades apontadas nas obras, que vão da utilização indevida de recursos naturais ao tratamento criminoso destinado a populações nativas. Entre 2010 e 2012, a desnutrição infantil nas aldeias da região de Altamira-PA cresceu 127%. Neste mesmo período, os atendimentos de saúde a indígenas aumentaram em 2.000%. E Belo Monte ainda parece muito distante de incomodar significativamente.
Com o rompimento da barragem em Mariana, 60 milhões de metros cúbicos de resíduos foram despejados no Rio Doce, 120 nascentes foram soterradas e só sobraram 500 metros de água limpa entre a nascente e a área da mineradora. Trata-se do maior desastre ambiental da história do país. E como ele, o país, tem reagido?
De imediato, com um silêncio quase constrangedor. Autoridades e imprensa pouco se pronunciaram. Foi somente com a pressão das redes, através de fontes alternativas de comunicação, como, por exemplo, a página Ministério da Verdade, que o desastre virou notícia. Ainda assim, sem o devido destaque.
Quando veio para valer, a cobertura esteve concentrada menos nos dramas particulares das populações afetadas ou no precedente desenvolvimentista de uma atividade obsoleta em três séculos, mas mais nos aspectos técnicos do estouro da barragem. Viralizou na rede o registro amador de uma entrevista à Globo interrompida quando um morador começou a enquadrar a Samarco diante da inacreditável série de erros com os planos de emergência.
Enquanto isso, os ataques em Paris continuavam rendendo depoimentos emocionados. Neste caso, poucos especialistas em rede aberta têm tratado do assunto. Nem precisa. Quer dizer, todo mundo sabe que o terrorismo é errado. O que precede os atentados não precisa de explicação, só de um tratamento dramático. Com Mariana é diferente, pois este imaginário diz que o problema está nos meios, na execução, e não exatamente no seu fim, que é o desenvolvimento, seja lá o que isso signifique.
Houve até, e ainda há, quem entendesse a Samarco como vítima nesta história, como o deputado estadual Theodorico Ferraço (DEM-ES). E houve também quem criasse uma página Somos Todos Samarco para evidenciar benfeitorias da empresa e denunciar atitudes anticidadãs de pessoas comuns. Houve quem insistisse na importância da mineradora para a região, já que “dá” emprego às pessoas. O desenvolvimentismo, que sempre alimentou da insalubridade, vê na tragédia também uma oportunidade de redenção.
Mas os problemas não param por aí. Tem sido grande, por exemplo, a pressão por punições aos responsáveis. Mas, diante de uma legislação ambiental ainda imatura e evasiva diante da sede pelo avanço, como? Como, se a Vale, ex-estatal controladora da Samarco que acabou com o Rio Doce no nome e na natureza, doou quase R$ 40 milhões a candidaturas de governo e oposição em 2014? Como, se o poder econômico continua sendo determinante no tratamento das notícias?
Neste momento, há mais perguntas do que respostas. Mas que a lama da Samarco não encubra também a tônica tanto do desastre quanto das leituras catastróficas a seu respeito. E quem sabe Mariana possa servir como ponto de inflexão na história de um país que, de tão pra frente que foi, acabou caindo do despenhadeiro.
(*) Murilo Cleto é historiador e mestre em Cultura e Sociedade. Atua como professor no Colégio Objetivo e no curso de Licenciatura em História das Faculdades Integradas de Itararé
(Foto de capa: Antonio Cruz/ABr)