A recusa do tratamento de pessoas com autismo pelas operadoras de saúde lidera o ranking de processos abertos no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) sobre negativa de cobertura assistencial por planos médicos, segundo a pesquisa do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e da PUC-SP.
O estudo tem como objetivo analisar os efeitos da Lei nº 14.454/22, que determinou mudanças no rol de tratamentos e procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), um dos principais canais de relacionamento com o usuário de plano de saúde, entre solicitações, pedidos de informação e reclamações.
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A pesquisa coletou mais de 40 mil processos, distribuídos em 1ª instância na Justiça estadual entre janeiro de 2019 e agosto de 2023. Desse total, 16.808 eram ações referentes à recusa de tratamento de condições médicas, sendo 3.027 (18%) dos TGD (Transtornos Globais de Desenvolvimento), considerado como autismo pela OMS.
O número é quase o triplo da quantidade de ações em segundo lugar no ranking, de transtornos por uso de drogas (1.116), seguidos de: obesidade (752) e câncer de mama (564). Transtornos por uso de álcool (560) completa as cinco condições de saúde mais citadas nas ações por negativa de cobertura.
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"A prevalência de usuários com transtornos globais do desenvolvimento em 18% das demandas nas quais foi possível identificar o CID [Classificação Internacional de Doenças] pode sugerir que tratamentos de autismo, condição abarcada sob esta categoria, são mais frequentemente negados do que tratamentos para outras condições", indica a pesquisa.
De acordo com o documento, os processos podem referir-se à total negativa de cobertura ou à restrição no número de sessões de psicoterapia ou de técnicas terapêuticas específicas, como a Terapia Comportamental Aplicada (ABA, da sigla em inglês), por exemplo.
O estudo destaca que a recusa na cobertura de tratamento da condição surge em meio a duas resoluções normativas da ANS, que, em junho e julho de 2022, editaram a RN nº 465, atual norma do rol. As mudanças ocorreram às vésperas do julgamento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) sobre a natureza do guia.
A primeira (RN nº 539) determinou, em caso de pacientes autistas, a obrigatoriedade de fornecimento de tratamentos conforme "o método ou técnica indicados pelo médico assistente" e de cobertura de sessões ilimitadas com fonoaudiólogo.
Por sua vez, a segunda (nº 541) expandiu a cobertura ilimitada de sessões a todos os tipos de terapia – com psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas e mais.
Os pesquisadores alegam que, em tese, seria possível imaginar que as iniciativas teriam como resultado a diminuição da judicialização de pacientes autistas contra planos de saúde. Contudo, "os resultados desta pesquisa não parecem apontar neste sentido", relatam.
Duas hipóteses surgem para o motivo da não diminuição no número de ações contra as operadoras de saúde: a ineficácia das decisões regulatórias diante das práticas do setor, como negativas indevidas de cobertura; e a inadequação em relação às demandas majoritárias deste grupo de pacientes.
"Ambas estas hipóteses são fortemente atestadas pelo fato de que, mesmo após as mudanças regulatórias, o movimento organizado de pacientes continuou fazendo pressão contrária à taxatividade do rol no STJ e, posteriormente, no Congresso Nacional", afirma o texto.
O estudo ainda chama atenção para o fato de que todas as cinco condições mais citadas nos processos foram objeto de políticas regulatórias ou judiciárias nos últimos anos, "com potencial repercussão sobre a judicialização em relação a estas causas".
"Portanto, apenas a partir dos dados produzidos, não é possível observar impactos significativos de mudanças regulatórias da ANS, do julgamento do STJ ou da Lei nº 14.454/2022 sobre o volume de judicialização contra a saúde suplementar", conclui.
Debate do rol da ANS
Em junho de 2022, o STJ julgou acerca da natureza do rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar da ANS. O principal debate estava na determinação sobre se o rol teria natureza taxativa, sem obrigatoriedade de cobertura de todos os tratamentos por planos de saúde, ou exemplificativa, servindo como referência mínima de cobertura.
O acórdão, publicado em julho de 2022, diz que o rol é taxativo e decretou que a operadora de saúde não está obrigada a arcar com procedimento não incluído no rol da ANS. Com isso, as empresas privadas do setor poderão negar exames, cirurgias, fornecimento de medicamentos e procedimentos não incluídos na relação do órgão regulado, desde que nela existam alternativas igualmente efetivas, seguras e eficazes já previstas.
A medida teve repercussão amplamente negativa na sociedade civil, uma vez que foi vista como uma forma de privilegiar planos de saúde em detrimento do direitos dos usuários.
Em resposta, pouco mais de um mês depois, o Congresso Nacional publicou a Lei nº 14.454, que alterou a Lei dos Planos de Saúde para prever expressamente que o rol da ANS seria a referência mínima para a cobertura de planos de saúde no Brasil, garantida a cobertura de tratamentos ou procedimentos nele não previstos.