A microbiologista Natália Pasternak ganhou reconhecimento pelo trabalho de divulgação científica durante a pandemia da Covid-19 e foi uma das principais porta-vozes da defesa da ciência ao esclarecer a importância das vacinas e destacar a ineficiência da cloroquina para o tratamento do coronavírus.
Só que agora a cientista está no meio de um fogo cruzado e reacendeu o debate acalorado sobre o que é ou não ciência. Ela acaba de lançar o livro "Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério" (Editora Contexto, 2023), escrito em parceria com o jornalista Carlo Orsi.
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Nas redes, o assunto é um dos mais comentados neste domingo (30) e divide opiniões. Há artigos de opinião e matérias jornalísticas que abordam o conteúdo da obra.
Um sinal de alerta que vale ser considerado neste cenário com extremo cuidado é que muitos negacionistas, terraplanistas, cloroquiners e antivacinas que atuam fervorosamente contra a ciência têm se aproveitado das críticas feitas ao livro da dupla para atacar a ciência de um modo geral e relativizar a importância do conhecimento científico.
Em entrevista concedida a O Estado de S.Paulo no dia 17 de julho, a dupla de autores comenta que a obra "explica o contexto histórico onde aquelas pseudociências ou crenças nasceram, o contexto social e político da época, as evidências científicas, se já foi testada, como foi testada, o que a melhor evidência diz".
"A gente explica quais são as alegações de como aquela pseudociência poderia funcionar ou como as pessoas acreditam que ela funcione. E tudo isso não é a nossa opinião, tudo está absolutamente referenciado em publicações científicas e de divulgação científica por mestres como Martin Gardner, Carl Sagan, James Randi. Se você olhar a bibliografia do livro, ela é extensa. E alguém que escreve uma nota de repúdio dizendo que os autores não sabem do que estão falando corre o grande risco de dizer que todas as nossas referências também não sabem do que estão falando", disseram.
Régua única
O xis da questão apontado pelos que criticam a obra é que Pasternak e Orsi misturam alhos com bugalhos e adotam um tom arrogante e cientificista desde o título. Eles juntam num mesmo balaio coisas bem diferentes. A obra aborda 12 temas: psicanálise, homeopatia, acupuntura, astrologia, curas naturais, curas energéticas, modismos de dieta, paranormalidade, discos voadores, pseudoarqueologia, antroposofia e poder quântico.
Especialistas nessas áreas têm vindo a público aos borbotões para defender o próprio quinhão.
É o caso do artigo publicado no Brasil 247 pelo psicanalista Roberto Calazans em parceria com Rosane Zétola Lustoza, com reflexões importantes sobre o livro polêmico sob o título "A psicanálise mais uma vez tratada como Geni".
A primeira delas aponta que a obra tem uma abordagem problemática ao usar a fama conquistada por Pasternark durante o debate público ao longo da pandemia da Covid-19 para tentar impor o método científico como a única régua válida para todo e qualquer conhecimento, o que pode ser uma visão simplista e limitada.
É comum que alguém com conhecimento em determinada área se sinta autorizado a falar sobre qualquer outro campo de conhecimento, o que pode levar a conclusões equivocadas. Nesse contexto, a crítica no artigo de Calazans e Lustoza recai sobre as opiniões de Pasternak e Orsi ao falarem sobre a Psicanálise, uma área que não é da expertise de nenhum deles e sobre a qual eles se restringem a comentar.
O reconhecimento sobre a importância do método científico é fundamental, mas também é preciso compreender que há outros sistemas de validação de conhecimento em diversas áreas do saber. O diálogo e o respeito mútuo entre os campos de conhecimento são essenciais para uma visão mais abrangente e enriquecedora do mundo que nos cerca.
O livro de Pasternak e Orsi ignora que pensar e estabelecer o modo de validação de um conhecimento é um campo de conhecimento específico, a chamada epistemologia, tem seus debates internos. Ao achar que seus pressupostos não podem ser criticados, a pesquisadora empobrece demais sua análise.
Há ainda mais três aspectos problemáticos no livro polêmico de Pasternark e Orsi.
- Princípio da autoridade. Dizer que discordar do que foi escrito na obra equivale a discordar de vários outros autores que conduziram pesquisas e comprovaram a ineficácia da psicanálise.No âmbito científico, é essencial questionar o princípio da autoridade como primeiro passo. Afinal, também há diversos artigos científicos que comprovam a efetividade da psicanálise em comparação com outras psicoterapias.
- Dinâmica das ciências humanas. O livro demonstra que os autores não consideram a dinâmica do debate no campo das ciências humanas, que é constantemente permeado por diferentes proposições e tensões e caracterizado por uma pluralidade de abordagens e perspectivas.
- Impactos sociais ignorados. A obra de Pasternak e Orsi não levam em consideração que nas ciências humanas é necessário considerar os impactos sociais. É fundamental compreender as interações complexas entre as ciências humanas e seu contexto social para uma análise completa.
Críticas à homeopatia
Outro ponto problemático da obra de Pasternak e Orsi apontado por especialistas são as críticas feitas contra a homeopatia. Na última quinta-feira (27), o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu uma nota em que afirma que "a homeopatia é praticada com rigor e ética, diariamente, por cerca de 2,8 mil médicos habilitados. Trata-se de uma das 55 especialidades reconhecidas no país. Para cumprir sua missão, esses profissionais passaram por formação em Residência Médica ou provaram seu conhecimento em provas organizadas pela Associação Médica Brasileira (AMB)".
"Esses especialistas atendem milhares de pacientes, que reconhecem nessa linha de cuidados eficácia na prevenção e no tratamento de doenças. Diante disso, vale lembrar que não há qualquer trabalho em andamento com o intuito de avaliar a permanência, ou não, da homeopatia no rol de especialidades que consta da Resolução CFM nº 2.330/23", ressalta o texto.
Chama a atenção a agilidade e rapidez com que o CFM se posicionou contra as críticas feitas por Pasternak e Orsi diante da postura de não condenar a prescrição de cloroquina e hidroxicloroquina, remédios sem eficácia contra a Covid-19. Tanto que o então presidente da entidade, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, teve o indiciamento pedido pelo relatório final da CPI da Pandemia de 2021.
Acupuntura: sustentada por estudos
O professor de acupuntura da Associação Brasileira de Acupuntura (ABA), Marcos Lisboa Neves, em entrevista ao SBT no dia 23 de julho, disse ver o ataque à sua área como "falta de respeito com quem pesquisa".
"Eu entendo perfeitamente a bandeira que ela levanta. Tem coisas que realmente precisam ser ditas. Muitas práticas estão sendo vendidas e ofertadas à população sem qualquer evidência científica. Mas a gente tem que separar o joio do trigo. Não dá para botar tudo no mesmo balaio. Acupuntura não deve estar no meio dessas outras demais práticas, tem respaldo bem grande", explicou o fisioterapeuta.
Neves esclareceu ainda que a acupuntura tem uma base plausível do ponto de vista biológico. Ele destacou que a prática é apoiada por aproximadamente 40 mil estudos em revistas científicas de renome mundial, conduzidos por grandes centros de pesquisa, não apenas na China. "Temos confiança não apenas na eficácia, mas também nos potenciais efeitos positivos dessa abordagem", defendeu.
"Posso afirmar com segurança que a acupuntura é a intervenção não farmacológica mais amplamente estudada em todo o mundo", acrescentou Neves, que possui especialização em dor e medicina paliativa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestrado e doutorado em neurociência pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Neves também ressalta que a acupuntura é um tratamento enraizado em uma cultura milenar, a chinesa. "Ela faz parte da medicina tradicional chinesa, e quando falamos sobre suas bases teóricas, estamos nos referindo à riqueza dessa cultura. E cultura é algo que não questionamos", argumenta.
Por outro lado, Pasternak e Orsi sustentam que "o fato de uma prática ter raízes culturais tradicionais não garante, por si só, sua segurança e eficácia".
O que diz o Ministério da Saúde
Algumas das práticas criticadas no livro "Que Bobagem!", como Medicina Tradicional Chinesa (MTC), homeopatia, ioga e constelação familiar, fazem parte da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PICs) desde 2006, sendo permitidas no Sistema Único de Saúde (SUS). Ao todo, existem 29 atividades integradas.
A atual gestão do Ministério da Saúde valoriza a ciência sem deslegitimar os saberes tradicionais, especialmente aqueles provenientes dos povos que vivem no Brasil, como indígenas e quilombolas, que também são dignos de valorização.
A implementação das PICs no SUS tem como objetivo promover a integração entre a medicina moderna e as práticas tradicionais. As Práticas Integrativas e Complementares em Saúde não substituem tratamentos convencionais, mas os complementam, oferecendo mais opções de cuidados de saúde para a população.
Reação dos internautas
Confira as reações de internautas ao livro de Pasternak e Orsi.