DOENÇA AUTOIMUNE

“Paralisado do pescoço pra baixo”: O drama de um paciente que teve Guillain-Barré

Tudo ia normal na vida do farmacêutico Ricardo Murça, então com 44 anos, até que uma dormência nas mãos e pés o levou à intubação, traqueostomia e 74 dias de internação

O farmacêutico Ricardo Murça.Créditos: Arquivo pessoal
Escrito en SAÚDE el

A vida do farmacêutico Ricardo Murça seguia normalmente até a madrugada do dia 18 de setembro do ano passado. Trabalho, rotina com a família, retomada da vida acadêmica (ele passou a cursar psicologia quase 20 anos após a primeira formação) e uma infinidade de tarefas. Dias antes, uma febre súbita e avassaladora o pegou tão forte que tornou difícil até mesmo o ato de dirigir na volta para casa. No entanto, na manhã seguinte, tudo já estava bem.

Murça, na fatídica madrugada de 18 de setembro de 2022, manifestaria os primeiros sinais de uma doença autoimune grave: a Síndrome de Guillain-Barré. Na maior parte dos casos, os pacientes relatam algum quadro infeccioso nos dias que antecedem os sintomas iniciais dessa síndrome, muitas vezes até como resultado de doenças comuns, como as do trato respiratório.

A Síndrome de Guillain-Barré é uma enfermidade que ataca o sistema nervoso, interferindo nas conexões do cérebro com outras partes do corpo, sobretudo com os membros superiores e inferiores. A definição “autoimune” indica que o próprio sistema imunológico ataca o organismo. Tecnicamente, ela provoca uma paralisia inflamatória aguda dos nervos periféricos.

“Era madrugada, de um sábado para domingo, do sábado 17 para o domingo 18, em setembro (de 2022). Eu tomei umas cervejas no sábado à noite, até porque tinha conseguido resolver alguns problemas, aí depois eu fui dormir. Lá pelas 3h ou 4h, na madrugada, eu levantei para fazer xixi e quando eu pisei no chão eu senti a perna sem força. Eu achei aquilo estranho e pensei ‘ah, a perna deve estar dormente’... Como eu estava com muito sono, eu me levantei para ir fazer xixi logo, mas precisei me levantar me segurando. Aí eu percebi que o joelho estava totalmente travado, duro. Eu insisti em ir ao banheiro e quando cheguei lá, que fui abaixar o short, foi difícil também, porque eu percebi que a mão estava sem força. Sem nenhuma força para ficar de pé ali, eu tentei, então, sentar no vaso. Desmoronei, caí no chão”, recorda o farmacêutico, que já completou 45 anos.

A experiência assustadora rendeu pelo menos um fruto. Murça escreveu o livro “Um surto de possibilidades: A trajetória de luta contra a Síndrome de Guillain-Barré”, no qual mescla informações sobre a doença e sua história pessoal. O paciente segue narrando os momentos que antecederam o diagnóstico.

“Eu me levantei do chão e daí consegui fazer xixi, mas aquilo era totalmente atípico. Na hora, tentando manter a calma, eu pensei: ‘não adianta ficar remoendo isso agora, vou deitar e dormir’. Àquela hora, com filho pequeno em casa, enfim... Eu fui e deitei de novo na cama, embora estivesse meio ansioso. Mas eu dormi. Quando acordei, coloquei o pé para fora da cama e aconteceu de novo. Foi aí que eu chamei minha esposa e disse ‘olha só o que está acontecendo comigo’...”, continua Murça.

“Os dedos dos pés já não mexiam mais, ali mesmo na cama. Aquele movimento piano, eu não conseguia fazer. Eu não conseguia colocar o chinelo, porque não podia dobrar os dedos para baixo. Totalmente sem força, e nas mãos a mesma coisa. Pela manhã, eu conseguia até fazer algumas coisas e ainda mantinha alguma força, como, por exemplo, para carregar meu filho. O primeiro pensamento de todos era de que seria um AVC... A esposa de um amigo lembrou, então, que o HC era uma referência no tratamento de AVC”, conta.

Não à toa, Murça recorda a preocupação em chegar ao hospital para receber atendimento logo, só que depois a sensação se inverteria e o seu medo era não sair de lá, mesmo sem saber exatamente o que tinha e a gravidade da situação.

“Eu cheguei ao HC (Hospital das Clínicas) ajudado por alguns amigos e pela minha esposa, e então eu entrei. E foi estranho, porque antes eu tinha medo de não conseguir entrar, e quando eu entrei, eu fiquei com medo de não sair... Me recordo que a primeira enfermeira que me atendeu fez uma meia-dúzia de perguntas, me observou e falou de cara: ‘isso não parece AVC, não’... Nós vamos encaminhar você para a neurologia... Na neurologia do HC eu fui completamente revirado. Tudo que você puder imaginar, os médicos fizeram. Às 19h, do domingo mesmo, eu já praticamente não me mexia do pescoço para baixo. A partir daí, não teve jeito, eles me tiraram da observação e me colocaram na internação... Um médico já tinha me dito, a essa altura, que aquilo não era um AVC e que eles investigavam uma outra coisa... Ele disse que tudo dependeria do resultado de dois exames: o primeiro deles uma punção lombar, para coleta do líquor, e o outro seria uma eletroneuromiografia... O fato é que esse mesmo médico me disse depois que já suspeitava da Síndrome de Guillain-Barré, e os resultados confirmaram isso”, diz Murça, retomando o drama e a angústia que viveu.

A parte mais assustadora de sua experiência com a Síndrome de Guillain-Barré foi manter-se acordado, consciente. Seu corpo não respondia a um comando sequer, mas a mente seguia ativa, vendo tudo, entendendo tudo. Só que o pior ainda estava por vir.

“Eu não perdi a consciência o tempo todo. Eu estava lúcido e orientado, e também não perdia a sensibilidade no corpo. Eu havia perdido apenas a capacidade de me movimentar, eu não conseguia mover nada do pescoço para baixo, embora sentisse essas partes do corpo... Na quarta-feira desta semana que começava, eu fui intubado. Na verdade, na segunda à noite eu já fui para uma unidade semi-intensiva, porque eu não estava conseguindo respirar direito, mas sempre monitorado. O tempo todo eu já fazia uso da imunoglobulina, mas o meu pulmão não estava dando conta, porque eu era fumante. Como os médicos não queriam de forma alguma que um dano maior no cérebro ocorresse, por causa da queda de oxigênio, eles então falaram que seria melhor me intubar. Eu relutei um pouco, mas topei... E foi isso, fui intubado”, relembra.

Numa situação já dificílima, temendo o tempo todo não resistir, o farmacêutico ainda teve, digamos, um azar danado na hora de realizar o procedimento da intubação. Murça conta, agora, sua experiência de quase morte, o que a ciência identifica pela sigla EQM.

“O problema é que na hora que os médicos me intubaram, eu tive uma trombose. Soltou um trombo da minha perna e ele foi parar no pulmão. Nesse momento eu estava sedado e foi aí que eu tive o que eu digo que foi uma experiência de quase morte. Eu relato isso no livro, essa experiência. A sensação que eu tinha era de que minha cabeça era um videogame, naquele momento que apaga tudo, e surgem umas pecinhas que parecem aquelas pedrinhas do jogo Tetris... Isso ocorreu por umas três vezes, e na sequência eu senti que voltei... Eu estava intubado e percebia que vinham os médicos ao meu redor”, conta Murça.

Ao todo, foram dois meses e meio só dentro de hospitais, além das complicadas sequelas que precisavam ser superadas ou atenuadas pelas incansáveis e infinitas sessões de fisioterapia.

“Eu fiquei do dia 20 ao dia 25 intubado, e então eu fui traqueostomizado. A intubação é um processo mais invasivo e a traqueostomia era um procedimento menos problemático. Como eu ia ficar ali por muito tempo, eles fizeram a traqueostomia, e eu até preferi, embora hoje tenha essa cicatriz... Na traqueostomia eu fiquei do dia 25 até 19 de outubro, um bom tempo. Depois que reabilitaram meu pulmão, e eu agradeço muito ao pessoal da fisioterapia, eu ainda permaneci lá no Hospital das Clínicas, internado, até 10 de novembro e aí já fui direto para um hospital de reabilitação, que é da Rede Lucy Montoro... Lá eu permaneci até 2 de dezembro, quando voltei para casa e segui de forma rígida a fisioterapia e a reabilitação... Tudo isso me custou 74 dias, para ser preciso”, diz.

Se engana quem pensa que Ricardo Murça não está bem. Mesmo diante das limitações, que vêm sendo superadas diariamente, o farmacêutico que quer ser psicólogo revela que já recuperou boa parte de sua autonomia, mostrando que quer deixar para trás o drama que viveu por conta da Síndrome de Guillain-Barré.

“Eu fiquei com sequelas na perna, mas eu estou andando, e fazendo praticamente tudo... Eu consigo andar, mancando um pouco, e às vezes eu acho que meio torto, mas estou andando... Vou trabalhar sozinho, ando na rua... Só tenho dificuldade mesmo se eu tiver que andar muito, andar quilômetros...”, conclui.