CONSCIENTIZAÇÃO

Dia Mundial do Orgulho Autista: veja relatos de pessoas do espectro autista e entenda a condição

Fórum conversou com uma psicanalista e duas pessoas com autismo para entender tudo sobre o espectro

Em 18 de junho comemora-se o Dia Mundial do Orgulho Autista.Créditos: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Escrito en SAÚDE el

*Matéria publicada originalmente em 18/12/2022

Anualmente, comemora-se em 18 de junho o Dia Mundial do Orgulho Autista. A data foi criada em 2005 pela organização estadunidense Aspies for Freedom com o objetivo de promover a conscientização das pessoas sobre o autismo, estimular a inclusão e combater o preconceito. 

Autismo é como se denomina o conjunto de condições e funcionamentos mentais e psíquicos que apresentam determinadas características. Estima-se, a partir de dados da Center of Diseases Control and Prevention, dos Estados Unidos, que no Brasil haja cerca de dois milhões de pessoas com autismo. De acordo com o instituto, há uma média de 1 caso a cada 110 pessoas nos EUA – transportando a média de lá para a população daqui, chega-se ao número estimado. O que se sabe, de forma mais precisa, é que só no estado de São Paulo há mais de 300 mil casos registrados.

Fórum conversou a psicanalista Fátima Batistelli, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e especialista em tratamento de crianças com autismo, para compreender melhor a questão. 

Fátima explica que antes se falava em autismo e em asperger, mas a partir da criação do CID11, uma classificação diagnóstica da Organização Mundial de Saúde, tudo foi colocado dentro da mesma denominação, o próprio CID11, que se refere ao Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). Em resumo, o TEA se refere a uma série de características que essas várias síndromes e condições têm em comum.

“Vai desde uma coisa mais leve, o Asperger, por exemplo, que ficaria num autismo mais leve, vamos chamar assim - até as coisas mais severas. Todos vão compartilhar algumas coisas em comuns. Entre elas, a possibilidade de ser empático é mais difícil para esses indivíduos pela dificuldade que apresentam de se colocar no lugar do outro”, diz a psicanalista, mas pondera que isso não significa que sejam pessoas maldosas.

Pelo contrário, são pessoas que apresentam dificuldades de ler reações externas, de ver no outro situações que poderiam ser, também, percebidas em si mesmas. Nada tem a ver com a chamada falta de empatia ‘comum’ que, segundo a especialista, parece estar faltando na humanidade como um todo.

A explicação dela casa com o relato de João Pedro de Oliveira Merces, jovem de 19 anos com autismo que a Fórum entrevistou. Ele conta que não pode estar sozinho em lugares públicos, por exemplo, porque tem dificuldades em detectar as intenções alheias, sobretudo quando não seriam exatamente boas. “Eu não tenho muita noção de como as pessoas me enxergam, não consigo ler as pessoas em muitas situações. Mas pelo que minha mãe fala, existe muito preconceito ainda e falta de empatia conosco”, declarou, quando perguntado se acreditava que a sociedade, de maneira geral, teria preconceitos em relação ao autismo.

Outra característica que Fátima Batistelli aponta como comum ao espectro do autismo são os movimentos repetitivos. “Muitas vezes você vê as crianças que balançam as mãos e o corpo. Isso também é uma das características que está dentro do TEA. Não fazer contato visual é outra. São crianças ou indivíduos - eu trabalho muito mais com crianças do que com adultos - que falam com você sem te olhar no olho ou, quando olham, apresentam um olhar oblíquo, do tipo que olha você, mas como se te atravessasse para olhar algo que está atrás”, explicou.

Outro sinal é quando a criança não atende pelo chamado do seu nome. “Muitas crianças que começo a atender após os 3 anos já haviam passado, por exemplo, por testes de audiometria”, conta.

A psicanalista aponta que cada vez mais se trabalha com crianças cada vez mais novas. Também que não é feito diagnóstico de autismo antes dos 3 anos, mas que até essa idade se fala em risco de autismo. “Trabalho com bebês e com crianças pequenas e há alguns sinais como, por exemplo, o bebê não olhar para a mãe quando mama ou fazer determinados movimentos, que chamam a atenção”. Ela diz que muitos desses pacientes acompanhados desde o início da vida sequer apresentam o autismo ao longo da vida, justamente por conta do tratamento. “Tenho batido na tecla de que temos que começar a enxergar isso muito cedo”.

João Pedro conta que a mãe recebeu seu diagnóstico de Síndrome de Asperger quando ele tinha de 8 para 9 anos de idade, mas que, segundo relatos maternos, aos 2 anos já apresentava alguns comportamentos diferentes. “Quando era pequeno, comecei a morder a mão, era muito agitado e não dormia direito. Também tinha resistência à dor, me machucava e não chorava, além de convulsões. Depois do diagnóstico, com o tratamento, minha vida melhorou muito. O que me deixa às vezes triste é não poder ir para os lugares sozinho. Não posso viajar sozinho, por exemplo, pois enxergo o mundo diferente e não saberia me defender de qualquer situação perigosa; não consigo saber se uma pessoa está com malícia. Não sei identificar sarcasmo ou piadas”, explicou.

Elias Jabbour, doutor em Geografia Humana pela USP e professor de Relações Internacionais e Economia na UERJ, é um exemplo da importância do diagnóstico de crianças. Ele contou à Fórum que foi diagnosticado com Síndrome de Asperger já adulto, graças ao diagnóstico do seu filho Khalil.

“Por conta de comportamentos dele, muito semelhantes aos meus, como, por exemplo, gostar de ficar fechado em si mesmo, estar muitas vezes hiperfocado e ter problemas com filtros sociais, que fui perceber isso. Sobre os filtros, já foi pior, hoje consigo lidar melhor com isso”, contou.

Outra característica do TEA apontada pela psicanalista, e de certa forma também por João Pedro e Elias Jabbour, é a dificuldade de simbolizar.

“São muito concretos. Por exemplo, eu tinha uma paciente que, um dia, chegou com o cabelo cortado diferente e a minha paciente não gostou. Quando perguntada sobre o que achava do novo penteado, olhou para a menina e falou: ‘nossa você está horrível’. E ela não entendeu por que a menina ficou brava. O traquejo social é algo que a pessoa com autismo tem muita dificuldade. Se você for contar uma piada para alguém que apresente essa característica, tem que ser uma piada mais no estilo ‘pastelão’, se optar pela veia do Jô Soares, com piadas mais sofisticadas, o receptor pode apresentar dificuldades no entendimento. No caso das crianças, geralmente não conseguem brincar de ‘faz de conta’, porque apresentam essa dificuldade em simbolizar. São ligados a coisas mais concretas”, afirmou Batistelli.

A Síndrome de Asperger

Tudo o que a psicanalista falou até agora se refere a características comuns ao espectro do autismo, mas não necessariamente da Síndrome de Asperger. Batistelli diz que o Asperger apresenta algumas dessas características, como a dificuldade de socialização, mas que o quadro apresentado é bem menos acentuado do que em outras síndromes consideradas mais fortes.

Essa dificuldade social se expressaria não apenas na dificuldade de fazer amizades, mas sobretudo na falta de troca. “Geralmente, as conversas são unilaterais. Gostam de falar daquilo que é do interesse deles. Então, se eles têm um assunto de interesse, podem conversar horas com você, muitas vezes sem perceber se você está ouvindo, entendendo ou se gosta daquele tema. Geralmente, são bons em determinadas áreas, porque se dedicam muito”.

Para Elias Jabbour, o principal desafio das pessoas com Asperger, para além de driblar preconceitos sociais, é usar o que chama de pontos positivos da condição em favor próprio e aprender a lidar com os pontos negativos. No seu caso particular, aponta que a facilidade que tem para se concentrar em leituras e estudos o ajudou a tornar-se quem é.

“A Síndrome de Asperger, que agora virou moda ser usada para diagnosticar pessoas focadas e boas em algo, como o Messi, era chamado de ‘autismo de alto desempenho’ quando eu comecei a minha carreira”, contou a psicanalista.

Como é viver com autismo?

Para Batistelli, viver com autismo na sociedade brasileira não é tarefa fácil. Ela explica que uma das inclusões escolares mais difíceis de ser feita é justamente a do aluno com autismo. “Nem toda escola consegue incluir, e por mais que queira, encontra dificuldades. Principalmente porque muitas vezes essas crianças se isolam ou, nervosas com alguma situação, podem fazer movimentos estranhos que despertem reações complicadas dos outros alunos”.

Jabbour ainda aponta que, como tudo no Brasil que não é amplamente conhecido, as pessoas com autismo sofrem preconceito. “Não no meu caso pessoal, que sou uma pessoa relativamente bem-sucedida, mas no geral há muito preconceito com qualquer diagnóstico desse tipo, especialmente com quem tem autismo mais grave. Não temos, por exemplo, serviços públicos adequados para tratar crianças com grau de autismo grave – uma criança assim, no Brasil de hoje, só pode vir a ‘dar certo’ se for rica. Se vier de uma família pobre, a dificuldade para lidar com isso será imensa. O poder público tem que ter um olhar maior para esse tipo de questão”, analisou.

E com razão, sobretudo porque há tratamento e acompanhamento. Nesse sentido, Fátima Batistelli contou que sua paciente que outrora não soube ter empatia com a amiga que cortou o cabelo, hoje melhorou seu quadro e tornou-se professora.

Já João Pedro conta que o que mais lhe agrada na vida é desenhar. Atividade que o levou a ter uma profissão. Atualmente, ele trabalha para o portal Brasil247 como desenhista e passa os dias vendo as transmissões do canal, e também dos “amigos da Fórum”, a fim de obter inspiração para suas artes.

“Minha temática é assim: faço desenhos e artes sobre celebridades, figuras políticas, famosos e anônimos do mundo inteiro. Eu amo fazer arte e deixar as pessoas felizes, emocionadas,” disse.

Já para Jabbour, descobrir-se autista foi uma espécie de libertação. “Obtive várias respostas sobre mim mesmo que há anos perseguia. Isso me ajuda muito a lidar com as minhas emoções, o meu jeito, a minha forma de enxergar o mundo, assim como no trato com o meu filho, pois enxergo nele muitas vezes a mim mesmo. Hoje sou um cara que tem consciência da própria condição neuroatípica e isso me fortalece, sobretudo porque redobro a atenção para certas coisas”, declarou.