FUNCIONA OU NÃO?

Remédio para ressaca: “Pesquisa não é confiável, efeito é plausível”, diz especialista

Farmacêutico industrial afirmou à Fórum que dados sobre testes do Myrkl, lançado no Reino Unido, são frágeis e “estranhos”, o que condena a confiabilidade do produto, mas salienta que proposta do mecanismo de ação parece fazer sentido

Créditos: Business Insider/Reprodução
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Lançado no Reino Unido na última semana e com vendas esgotadas no primeiro dia no site que o comercializa com exclusividade, o Myrkl, um composto que promete pôr fim ao sofrimento da ressaca advinda depois de muitos goles no dia anterior despertou desconfiança nos mais céticos dos beberrões e passou a chamar a atenção do meio científico, ganhando as manchetes de jornais por todo o mundo.

Segundo seu fabricante, o laboratório sueco De Faire Medical AB (DFM), que define o produto como um probiótico e não um medicamento, seu mecanismo agiria antes do álcool ingerido ser metabolizado no fígado, ação que resulta no surgimento de substâncias nocivas que causam a sensação de desconforto e mal-estar típicos do “day after”, por conta de uma gama de ácidos tóxicos para o organismo produzidos nesse processo. O Myrkl, por meio de suas bactérias, transformaria o álcool em gás carbônico e água evitando os sintomas clássicos da pós-bebedeira, dizem os desenvolvedores. Mas há muitas questões aí, sobretudo no que diz respeito a seus testes e pesquisa.

A condução dos estudos sobre o Myrkl, que por ser probiótico está isento do crivo rigorosíssimo da agência reguladora do Reino Unido, virou centro de uma polêmica ética no setor químico e farmacêutico europeu uma vez que os alguns de seus autores já tiveram vínculos com o laboratório sueco DFM, que também patrocinou os testes e análises. O fato de um grupo de apenas 24 pessoas ter participado dos estudos também despertou críticas, já que o número estaria muito abaixo dos contingentes normalmente usados nesse tipo de estudo, que, para piorar, teve ainda 10 desconsiderados nas análises por terem se encaixado em critérios de exclusão da pesquisa, o que reduziu a um número insignificante as pessoas.

A reportagem da Fórum foi ouvir o farmacêutico industrial e professor universitário José Eduardo Pandini Cardoso Filho, que é doutor em Química pela USP. Para ele, não é possível depositar qualquer confiança no estudo apresentado pela De Faire Medical AB (DFM).

“Essa pesquisa, para mim, não tem a menor confiabilidade, a confiabilidade é zero”, disse o especialista.

O doutor em Química explica que não se trata de pôr em xeque o trabalho realizado pela farmacêutica sediada na Suécia, mas sim observar que é simplesmente impossível que um estudo sério seja conduzido nos termos em que foi apresentado antes da venda do Myrkl.

“Esse tipo de pesquisa acaba afetando a confiabilidade do medicamento. Fica sempre a dúvida: por que foram usadas poucas pessoas, por que havia pessoas com algum tipo de vínculo com a empresa, sejam funcionários, ex-funcionários, sócios, enfim? Como é possível confiar num medicamento desenvolvido desse jeito? Me parece que tudo já começou errado. Se eles sabem, ou acham, de fato, que a droga é eficaz, por que eles precisaram tomar esse tipo de atitude? Há alguma razão para que eles não tenham feito a pesquisa, por exemplo, com 500 voluntários sem qualquer ligação com a indústria que vende esse medicamento agora?”, questionou Pandini.

Tecnicamente, explica o farmacêutico industrial, no entanto, o meio pelo qual o Myrkl faria efeito é plausível cientificamente. Ou seja, faz sentido desenvolver um produto nessa linha, ainda que seja necessário explicar melhor os resultados por meio de pesquisas.

“O mecanismo que os fabricantes citam é plausível, até certo ponto. E por quê? Porque se formos pensar no mecanismo desse medicamento, que eles dizem nem mesmo ser um medicamento, mas sim uma substância que não foi aprovada pelo órgão regulatório do Reino Unido, são dois tipos de bactérias que farão uma fermentação com o álcool no intestino, evitando que ele seja absorvido e que levem a todos aqueles efeitos que a gente conhece do álcool no organismo, que é a ressaca, uma consequência da metabolização do álcool pelo fígado”, explanou.

Mas para Pandini, uma informação técnica trivial permite questionar a eficácia do Myrkl. Ele explica que a ressaca não é só originária do processo que o probiótico promete combater, mas sim resultado de um complexo mecanismo do corpo humano, sobre o qual o remédio não diz qualquer coisa a respeito.

“O fígado é o órgão do corpo que metaboliza aí pelo menos 90% de todo tipo de drogas, medicamentos, de tudo que entra no nosso corpo. Nesse processo, são geradas substâncias que nós chamamos de metabólitos. Em relação à ressaca, um dos fatores responsáveis por ela são os metabólitos, que ficam no organismo, como acetaldeído, o principal deles, que é tóxico, e o ácido etanoico. Só que esse é um dos mecanismos que faz surgir a ressaca, mas não é o único. Em parte, o que os fabricantes sugerem como mecanismo de ação contra a ressaca é possível, porém há outros fatores que fazem desencadear a ressaca. Uma das enzimas que participa do metabolismo do álcool, do etanol, inibe a produção de glicose e, consequentemente, leva à diminuição do açúcar, da glicose, no organismo. Ou seja, a diminuição da glicose é algo que leva à dor de cabeça, por exemplo. Numa visão mais extrema da coisa, pensem num sujeito que bebeu demais e caiu. Ele pode até não estar em coma alcoólico, mas bebeu muito e precisou ir para o hospital... Isso tem uma explicação simples, a enzima que metaboliza o álcool também metabolizou o açúcar, fazendo com que ocorra uma acentuada baixa glicêmica que em muitos casos leva até mesmo ao coma. Pra piorar, o consumo do álcool também inibe a produção de um elemento chamado ADH, o hormônio antidiurético, que é o responsável por fazer você ir mais ao banheiro quando bebe, por um estímulo da diurese. Embora seja uma diurese pobre, com elevada concentração de água, sem perceber, isso causa uma desidratação, e todos sabem que a desidratação na ressaca é também uma das responsáveis pela dor de cabeça. Em síntese, há outros fatores que provocam a ressaca além daquele que os fabricantes deste medicamento dizem combater”, esclareceu minuciosamente o profissional especializado em farmácia industrial.

Quando questionado novamente sobre os testes e a pesquisa, se seria possível afirmar que o Myrkl é uma fraude, o químico declara não poder dar uma “sentença” sobre o produto, mas volta a falar da fragilidade do que foi apresentado até agora.

“Eu não posso afirmar que há uma fraude. Apenas dizer que tudo isso está muito suspeito. Uma pesquisa com esses contornos e características não vai ser aceita para publicação em nenhuma revista científica séria. Sem falar nos conflitos de interesse que são claros nesse caso. Um número baixíssimo de pessoas participando, e ainda por cima quase a metade do total foi excluída da pesquisa na hora de dar os resultados finais, por critérios de exclusão previamente estabelecidos. Mas todo mundo da área científica sabe, e isso pode ser num trabalho de iniciação científica ou até mesmo num TCC, que esses critérios que excluem os participantes devem ser levados em consideração antes mesmo do projeto ser levado a campo. E há ainda uma pergunta que até agora não teve sua resposta trazida a público: que critérios são esses? Há mesmo esses critérios ou será que eles foram excluídos porque os dados da pesquisa foram insatisfatórios para os desenvolvedores?”, questionou o farmacêutico.

Por fim, Pandini disse que, se de fato o mecanismo prometido pelo Myrkl for real, possivelmente o seu consumidor perceberá a ação da substância ainda enquanto estiver bebendo, já que o probiótico começa a agir pouco tempo depois de ser ingerido. Para ele, uma eventual diminuição da percepção dos efeitos do álcool pode levar a uma situação temerosa.

“Imaginemos que esse mecanismo de ação do probiótico realmente funcione. O usuário toma as tais duas cápsulas uma hora antes de começar a ingerir bebida alcoólica e, conforme o prometido, após beber bastante, umas horas depois, ele não está sentindo nada, nem bem-estar, nem euforia, nada. Qual será a reação natural de quem bebe, pois afinal a bebida traz prazer? Será beber mais, em doses ainda maiores. Fico com a impressão que há um elemento perigoso aí que é fazer as pessoas beberem mais porque não estariam sentindo os efeitos normalmente previstos e desejados que o álcool provoca”, finalizou o doutor em Química.