Preso nesta quarta-feira (28) pela Polícia Federal por descumprir medidas judiciais, Walter Delgatti Netto, o ‘hacker de Araraquara’, tem uma trajetória marcante no cenário político brasileiro. Além de ser o responsável pela interceptação e posterior entrega de conversas do ex-juiz Sergio Moro e do ex-procurador Deltan Dallagnol, além de outros membros da Lava Jato, ao site The Intercept Brasil – gerando em seguida a série jornalística Vaza Jato –, nos últimos tempos se aproximou da deputada federal bolsonarista Carla Zambelli (PL-SP) e do próprio ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), tendo tido sua participação ventilada em um eventual plano golpista.
Em um primeiro momento, ainda antes de ter sua identidade revelada, mostrou ao Brasil as relações completamente irregulares entre o então juiz Sergio Moro, o então procurador – hoje ex-deputado cassado – Deltan Dallagnol, e outros membros da operação Lava Jato. As revelações primeiro tiveram o The Intercept na dianteria que, em seguida, incluiu um conjunto de meios de comunicação numa força-tarefa para analisar e publicar os conteúdos. O resultado disso, ao longo do tempo, foi o fato de Moro ter sido declarado suspeito e seus processos da Lava Jato anulados, o que permitiu ao presidente Lula (PT) concorrer nas últimas eleições. Até aí, Delgatti era uma figura querida, e quase que folclórica, para o campo democrático.
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Foi justamente quando começava oficialmente a campanha eleitoral do ano passado, mais precisamente em agosto de 2022, que Delgatti se aproximou do campo bolsonarista. A campanha de Bolsonaro, guiada pelas paranoias conspiratórias do então presidente, procurou Delgatti para saber o que pensava sobre a segurança das urnas eletrônicas. Entre as pessoas com quem Delgatti esteve está Valdemar Costa Neto, presidente nacional do PL. Ele dizia que tinha condições de hackear o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes. A deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), aliada de Bolsonaro, também confirmou ter se encontrado com o hacker.
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Fizemos um levantamento a partir dos arquivos recentes da Revista Fórum a fim de recordar os episódios que explicam essa relação entre Zambelli, Bolsonaro e o ‘hacker de Araraquara’.
Entrevista à Fórum
Em 28 de julho de 2022, pouco antes de sua aproximação com Bolsonaro, Walter Delgatti deu uma entrevista ao Fórum Onze e Meia onde revelou que ao tomar conhecimento do teor das conversas e ilegalidades praticadas entre os procuradores da Lava Jato e o ex-juiz Sergio Moro, se questionou: e se eles continuarem?
“Eu penso: até onde eles chegariam se continuassem? Sei lá, um na Presidência, outro na Procuradoria-Geral da República, o que eles mudariam no país com aquele pacote de 10 medidas [de combate a corrupção anunciado por Moro]?”, questionou Walter Delgatti.
Em seguida, Delgatti afirmou que “o lavajatismo trouxe o bolsonarismo. Se não fosse o fato de o ex-presidente [Lula] ter sido preso... segundo as pesquisas ele teria ganhado [a eleição de 2018]. As pessoas passaram a falar o que antes não falavam, saíram da caixinha, o discurso de ódio. Eu vejo que vai ser difícil tirá-lo”.
Ao término da entrevista, um internauta perguntou a Walter Delgatti em quem ele iria votar para presidente na eleição daquele ano. “O Walter de hoje, sem dúvidas, vota no Lula, e não só voto, como peço que votem no Lula, faço campanha. Vou apertar 13”, revelou à época.
Aproximação com Bolsonaro
Menos de duas semanas depois, em 10 de agosto de 2022, é noticiado na Revista Fórum, em matéria de Ivan Longo, que Delgatti teria feito um acerto financeiro com a campanha de Bolsonaro. A notícia, à época, surpreendeu, dadas as declarações de dias antes à própria Fórum.
A matéria diz, apoiada em apuração do jornalista Luis Costa Pinto, que Zambelli e Bolsonaro queriam "colocar Delgatti na equipe paga pelo PL que faria apuração paralela dos votos, espelhando a apuração do TSE". O hacker, inclusive, teria agenda em Brasília com Bolsonaro naquela mesma data para fazer os acertos financeiros.
No mesmo dia, a deputada federal Carla Zambelli divulgou uma foto nas redes sociais ao lado de Delgatti. "28/07, Vilage Inn Ribeirão Preto & Convenções, com as malas na mão. O homem que hackeou 200 autoridades, entre ministros do Executivo e do Judiciário brasileiro. Muita gente deve realmente ficar de cabelo em pé (os que têm) depois desse encontro fortuito. Em breve, novidades", escreveu Zambelli ao postar a foto com Delgatti.
Mais cedo, a imprensa noticiou que a deputada estaria intermediando um encontro entre Delgatti e Bolsonaro para que o hacker trabalhasse na equipe de maketing da campanha do presidente à reeleição. No entanto, horas depois, questionada pela Fórum sobre o encontro, Zambelli enviou um áudio negando que o encontro dela com o ‘hacker de Araraquara’ tivesse relação com a campanha de Bolsonaro.
"Em nenhum momento tentei aproximar o Walter da campanha e eles não se encontraram", disse à Fórum.
Segundo a deputada, a foto seria de dia 27 de julho. "Não tem nada a ver com a campanha, nada a ver com o presidente", reforçou, sem esclarecer, contudo, o motivo pelo qual se encontrou com o responsável por divulgar as mensagens de procuradores da Lava Jato que deram origem à série jornalística Vaza Jato.
A aproximação revelou uma mudança de postura não só do hacker como também da deputada, já que em 2019, à época dos vazamentos das mensagens da Lava Jato, ela chegou a compará-lo a Adelio Bispo, o autor da facada em Bolsonaro durante ato de campanha em Juiz de Fora (MG), em 2018.
Dinheiro para atacar urnas eletrônicas
Fotos divulgadas pela revista Veja em 12 de agosto de 2022 revelam que Walter Delgatti Neto realmente se encontrou com Bolsonaro dois dias antes no Palácio do Alvorada – desmentindo o áudio de Zambelli. Delgatti foi levado por um Corolla cinza de vidros escuros e placas frias para a reunião fora da agenda, que contava ainda com a presença de Carla Zambelli.
Ao jornalista Reynaldo Turollo Jr., o advogado Ariovaldo Moreira confirmou uma reunião com Zambelli e Valdemar Costa Neto, presidente do PL, na sede do partido em Brasília. Na ocasião, Costa Neto e Zambelli teriam oferecido dinheiro e um contrato na campanha de Bolsonaro para que Delgatti atuasse como "garoto-propaganda" da tese estapafúrdia de Bolsonaro de fraude nas urnas eletrônicas.
“A hora que partiu para essa questão de o Walter afirmar que as urnas podem ser fraudadas aconteceu um mal-estar muito grande. Eu dei opção para o Walter ir embora comigo, disse que isso ia gerar um problema gigantesco para ele, para mim e para várias pessoas. Optei por pegar as minhas coisas e sair”, disse Moreira à Veja.
Dois dias depois foi revelado que a ideia de Carla Zambelli era que ele fosse contratado como um especialista em ataques cibernéticos pelo Instituto Voto Legal, indicado pelo PL ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para auditar as eleições. A deputada acreditava que os partidos de esquerda não contestariam o trabalho do hacker que revelou a Vaza Jato, e ajudou a dar fim às condenações de Lula.
Carla disse, apenas, que pagou a hospedagem de Delgatti e do advogado Ariovaldo Moreira, no Hotel Phenícia, em Brasília, cujas diárias custam perto de R$ 200. Delgatti foi à reunião com Valdemar para conversar sobre esse trabalho que ele poderia exercer como “fiscalizador das eleições”. Já o assunto do encontro com Bolsonaro não foi revelado.
A parlamentar confirmou que foram tratadas “informações valiosas”, mas se recusou a dizer quais eram: “Isso eu não posso falar”, declarou, segundo reportagem de Eduardo Gonçalves e Patrik Camporez, em O Globo.
Carla afirmou que Moreira, defensor de Delgatti na ação da Operação Spoofing, pediu dinheiro para continuar as negociações. O advogado negou.
“Ele virou para perguntar para mim quanto valia a democracia. Eu falei a ele que a democracia não tinha preço. E ele: ‘Mas eu queria ouvir um valor’”, contou a deputada.
Ela relatou, também, que Moreira ficou “nervosinho” com a recusa, decidiu ir embora e tentou levar Delgatti. Porém, o hacker falou, segundo Carla: “Não, eu vou ficar”. “E aí ele vazou o encontro para a imprensa, porque ele ficou nervosinho e queria dinheiro”, acrescentou a deputada.
Advogado sofre ameaças
Logo após “ficar nervosinho”, nas palavras de Zambelli, e deixar a reunião que negociava a entrada de Delgatti no bolsonarismo, o advogado Ariovaldo Moreira fez um boletim de ocorrência em 13 de agosto após receber ameaças contra a vida dele e da família por um número de WhatsAapp identificado pelo nome de "morte".
"Estou extremamente preocupado, pois as ameaças são dirigidas não só a minha pessoa, mas a toda minha família", disse Ariovaldo Moreira à Fórum. "Sinceramente, isso me desestabilizou", complementou.
Na ocorrência, realizada na 2ª Delegacia de Polícia de Araraquara, o advogado informa que a ameaça ocorreu "após abdicar da defesa do cliente relacionado com a 'Operação Spoofing' da Polícia Federal", em referência a Delgatti.
"Por fim, informa que as ameaças se iniciaram após retorno da reunião com autoridades relacionadas ao governo federal, na capital federal", diz ainda o Boletim de Ocorrência.
Sobre o desconforto com a reunião, Moreira negou que tivesse pedido dinheiro e acusou Zambelli de mentir: “Em momento algum foi pedido dinheiro. Pelo contrário, ela pediu que ele (Delgatti) fizesse coisas que eu achei que ele não devia fazer”, rebateu.
“Eu não vou falar o que ela pedia. O que ela queria eu não ia fazer, só isso. Não pedi dinheiro em momento algum. Ela pode fazer a acusação que ela quiser. Agora, se eu queria dinheiro e o Walter ficou lá? Não é estranho isso?”, questionou o advogado.
Atuação com militares no “relatório sobre as urnas”
Desaparecido desde agosto, quando foi levado por Carla Zambelli para um encontro com Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, foi publicado em 18 de novembro de 2022 que Walter Delgatti teria atuado junto aos militares que rastrearam o sistema de votação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para tentar encontrar fraudes nas urnas eletrônicas.
O hacker teria aberto uma empresa, a Delgatti Desenvolvimento de Sistemas, no dia 22 de agosto - logo após a reunião com Bolsonaro - para prestar serviços. Na reunião com Bolsonaro, Delgatti teria se aliado ao discurso de fraude dizendo que é contra as urnas eletrônicas porque "elas não conseguirão mais se defender porque quem está falando agora é o mesmo que eles chancelaram na Lava Jato".
Em reunião no Ministério da Defesa, Delgatti também defendeu a teoria da conspiração de alguns militares sobre o código-fonte "malicioso" das urnas, que direcionaria votos de Bolsonaro para Lula por meio de uma "chave embutida".
Junto aos militares, o hacker teria defendido a proposta da realização de um teste de integridade das urnas durante a votação, com a biometria de eleitores. Após insistência do Ministério da Defesa, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, autorizou o teste em uma pequena amostra das urnas, que não apontou falha alguma.
‘Golpe tabajara’
Por fim, em fevereiro deste ano, quando o senador Marcos do Val (Podemos-ES) revelou os planos golpistas de Bolsonaro, também foi revelada a participação de Delgatti na intentona golpista. O ex-presidente teria convidado o hacker a assumir a autoria da ação que visava grampear Alexandre de Moraes, conforme relatou o próprio Delgatti.
“Eles precisam de alguém para apresentar (os grampos) e depois eles garantiram que limpam a barra. Ele (Bolsonaro) falou: ‘A sua missão é assumir isso daqui. Só, porque depois o resto é com nós’. Eu falei: beleza. Aí ele falou: ‘E depois disso você tem o céu’”, disse.
Na suposta conversa com o hacker, Bolsonaro teria dito que eles já tinham obtido mensagens internas trocadas entre Moraes e servidores da Justiça, nas quais o ministro abordava supostas vulnerabilidades das urnas e uma preferência por Lula. Esse ponto deveria ser explorado na imprensa para alegar a suspeição do ministro e tirá-lo do comando do processo eleitoral. O hacker aceitou a oferta e ficou no aguardo de novos contatos dos apoiadores de Bolsonaro.
Prisão
Delgatti já tinha sido preso em julho de 2019, durante a Operação Spoofing, que desarticulou, segundo a PF, uma “organização criminosa que praticava crimes cibernéticos”. As investigações concluíram que o grupo acessou contas do aplicativo de mensagens Telegram utilizadas por autoridades, como procuradores da Lava Jato. O hacker conseguiu o direito a aguardar o julgamento em liberdade, até esta quarta-feira (28), quando voltou a ser preso pela Polícia Federal.
A motivação foi descumprimento de medidas judiciais. A informação foi divulgada pelo advogado dele, Ariovaldo Moreira. Em relatório, a PF ressaltou que Delgatti desrespeitou medida judicial que o proibia de usar a internet. Ele criou e-mails e uma conta em um site de compras. Os investigadores descobriram que foi criado um e-mail vinculado à conta bancária do hacker, com o objetivo de receber doações por meio de Pix.
Colaboraram Ivan Longo e Plinio Teodoro