Janja Lula da Silva sofreu mais um violento ataque misógino de um parlamentar da extrema direita na última terça-feira (27) durante a CPMI do Golpe. O autor foi o deputado Evair Vieira de Melo, bolsonarista, cujo mandato é dedicado a ataques torpes às mulheres, ao MST, aos pobres, à esquerda e ao presidente Lula.
“Porque o atual presidente não tem nem telefone, não tem rede social, não lê jornal. […] Quem manda nele é aquela abóbora que anda do lado dele”, vociferou o deputado durante a CPMI (Comissão Mista Parlamentar de Inquérito). E continuou: “[…] Nós queremos saber também porque ele [Lula] não tem telefone, porque a Janja não deixa. Não sei se é ciúme do marido ou para proteger o presidente da República”. Antes disso, Evair já havia referido-se à ex-presidente Dilma Rousseff como “mordoma de Lula” - as cenas do ataque estão no vídeo do Fórum Café abaixo.
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O ataque é mais um e insere-se numa série, que se iniciou ainda no tempo da prisão de Lula, ampliaram-se durante a campanha eleitoral de 2022 e chegaram ao paroxismo depois de 1° de janeiro. Os ataques não partem apenas da extrema direita. Janja tem sido alvo de ataques “off the records” na imprensa, que partem do próprio coração do governo. A primeira-dama é o alvo preferido da reação machista-patriarcal à presença das mulheres na vida política, econômica, social e cultural. É ódio, é medo, medo de que as mulheres assumam o comando -como estão assumindo, sem pedir permissão. Se Janja está no centro dos ataques, porque está no centro do poder, está longe de ser a única ou um caso isolado. Seis deputadas federais estão ameaçadas de cassação por se levantarem contra o Marco Temporal; a violência política de gênero tornou-se uma epidemia; a violência cotidiana nos espaços públicos, nas casas, nas famílias, alastra-se. Misoginia foi o tema central do Fórum Café de quarta-feira (28).
A ideia de abrir o debate sobre misoginia surgiu antes do último ataque a Janja, a partir de um artigo da economista e assessora parlamentar Bruna Matos, publicado na Fórum uma semana antes: “Fera, revolucionária e de amar: Por que Janja incomoda tanto?”.
Acabou sendo uma data mais que propícia.
O programa mergulhou no tema da misoginia.
Participaram do debate, além da própria Bruna Matos, a matemática Elenira Vilela e a jornalista Rebeca Motta, do Fórum Café. Tive o desafio e a alegria de mediar o encontro.
A seguir, um recorte dos principais momentos do diálogo entre as três.
Saiba um pouco mais sobre elas:
Bruna Matos, economista, é assessora parlamentar e integra a Executiva Estadual do PT de Minas Gerais, a coordenação da Comissão Nacional de Assuntos Educacionais do PT Brasil e a Coordenação Nacional da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara.
Elenira Vilela, matemática, é líder feminista e do PT e coordenadora nacional do Sinasefe (Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica).
Rebecca Motta, jornalista, é âncora do Fórum Café e editora do núcleo de jornalismo do Sou +Favela Notícias e +Favela TV, em Paraisópolis.
Se quiser, assista ao debate, num recorte feito pela equipe da Fórum:
Como foi a entrevista:
Bruna Matos - Ser uma mulher na política, é estar em todas as dimensões. Não apenas as mulheres parlamentares, não só as que são ministras, não só as que estão em cargos públicos. Nós estamos no movimento social, um movimento estudantil, movimento popular, movimento eclesial e partidário. Não é fácil. Nos expulsam da política. Nos expulsam de alguma forma. Nos expulsam quando nos diferenciam dos homens, dizendo que as nossas reações são infantis ou que somos loucas, inexperientes… Um dos maiores exemplos recentes da discriminação é este pedido de cassação de deputadas por causa do Marco Temporal. Houve deputados que fizeram a mesma fala que elas; e sobre eles não pesa qualquer ameaça.
Olham-nos de uma forma diferente. Os homens estão autorizados a serem firmes, os homens estão autorizados a serem diretos, as mulheres não estão. A gente tem que ser a bela, recatada, do lar. Quando chega uma primeira-dama que se contrapõe a essa imagem, o mundo desaba.
Esse vídeo da Janja (foi apresentado no programa, uma cena ocorrida no Ceará em 12 de maio passado, no Ceará, no lançamento do Pacto Nacional pela Retomada de Obras da Educação Básica) durante a assinatura do Pacto, é exemplar: Janja, cobrando o Lula, cobrando o presidente. Ela não está cobrando só o marido dela, estava cobrando do presidente, como uma figura política que ela é, e já era antes de conhecer o Lula. Pra mim, é um dos momentos mais bonitos que eu vi recentemente. No palco cheio de mulheres protagonistas da educação, só os homens foram chamados para assinar o Pacto. O protesto de Janja foi o protesto de todas as mulheres que fazem a educação.
Janja não é bela, recatada do lar, e se fosse não teria problema algum. Eu achei muito elegante quando você [Mauro] falou dos estilos de cada uma das primeiras-damas, cada uma das primeiras-damas com seu jeito. Nenhum problema. Mas eu digo: a bela e recatada já não nos contempla, não contempla as mulheres brasileiras. E não é atacando uma mulher que eu digo isso, é atacando um estereótipo que tentam nos impor o tempo inteiro, que nos violenta.
Então, ver a Janja assim é ótimo. Não é só querendo um espaço pra ela, mas principalmente falando: as mulheres estão aqui. Essas mulheres participaram desse processo. Elas têm que falar, nós temos que ir para a fotografia.
E a fotografia não é um momento meramente ritual para postar no Instagram em época de rede social, né? A fotografia compõe a história, deixa de nos invisibilizar na história. Acho que esse foi um dos momentos mais felizes de respirarmos, ainda mais depois de um governo que só nos violentou enquanto mulheres, assim, né?
Depois de um presidente que violentava as mulheres, Bolsonaro, ter de novo esse respiro e ver que há uma mulher numa posição de poder, que tem toda legitimidade para estar lá, que puxa outras mulheres para que estejam com ela, isso é um incômodo muito grande para a direita que quer a bela recatada no lar, e para a esquerda hipócrita, dos homens que se dizem companheiros, mas que querem continuar com seus espaços exclusivos.
Então, eu escrevi esse texto sobre Janja quase que toda coração, né? Assim, vinte minutos disparados, como um desabafo quase.
Elenira Vilela - Eu completei 35 anos de militância este ano. E é duro demais. Há poucos dias eu estava numa plenária do Sinasefe e chegou num ponto que eu saí, falei: "Deu, eu não vou ficar aqui nesse espaço que só me violenta. Eu sou coordenadora geral nacional do sindicato". A violência é muito grande, e qualquer coisa que discorde dos homens é alvo de ataques. Aos gritos me chamando de mentirosa. E isso num espaço do sindicato, eu não estou falando do espaço lá fora, né? Não eram uns bolsominions, registre-se. A misoginia e o machismo não são monopólio da direita, estão dentro do sindicato, dentro da esquerda, dentro do partido.
Uma vez, o PT de Santa Catarina, a gente fez um encontro de mulheres e, por exigência de determinados dirigentes, eu não vou mencionar o nome deles, todos os homens sentaram-se à mesa do evento. Houve um homem que, quando viu que tinha sete autoridades e a única mulher na mesa era a secretária de mulheres, falou: "Não, gente, está errado isso. Espera aí. Oh, fulana, vem aqui sentar no meu lugar, representando determinado movimento." E aí ficou um constrangimento.
Quando falamos que o machismo, a misoginia e o patriarcalismo são estruturais, dizemos que isso permeia a vida das mulheres 24 horas por dia, sete dias por semana, desde que nascemos. Outro dia, alguém estava me provocando: "Mas quer dizer que mulher da direita também sofre?" Como se elas não sofressem. A mulher da direita também sofre.
Tem aquela cena clássica do do Bolsonaro empurrando para trás a Daniela Reinehr (foi governadora interina de SC por duas vezes). "Sai e vai pra trás. Sai pra trás. Fica mais pra trás." Que ele queria estar à frente só com o Luciano Hang. Mas tem coisa parecida dentro da esquerda; talvez mais sutil, talvez mais disfarçada.
Eu não estou dizendo que é todo mundo igual. Não é todo mundo igual. Tem muitas diferenças, diferenças importantíssimas. O que digo é que o tempo todo ouvimos: você não tem o direito de estar nesse lugar, você não tem o direito de ser firme, você não tem o direito de criticar, você não tem o direito de se impor, que você não tem o direito de ter opinião, você não tem o direito de….
Tempos atrás escrevi um texto, relatando que os misóginos, os recalcados, eles estão presentes todos os dias na minha vida, não faltam um único dia na vida. Eu não tenho parâmetro de comparação do lugar que ocupo em relação ao lugar em que a Janja está, onde a pressão é muito maior. E quando é uma mulher negra, uma mulher trans, tudo se multiplica. É exponencial. Veja a Erika Hilton (PSOL-SP), mulher, negra, trans. É zilhões de vezes maior e mais duro do que enfrento.
Há uma outra questão, a do silêncio dos homens que até se dizem solidários às mulheres. Quando o silêncio é a violência incorporada. Veja o que aconteceu nesse ataque do fascista contra Janja e Dilma. A senadora Eliziane Gama (PSD-MA), relatora da CPI, foi a única a falar. Se ela ficasse em silêncio, seria parte da violência contra a Janja, contra a Dilma, contra todas as mulheres.
Ela tem obrigação de falar. Agora, me chama atenção que os homens têm igualmente a obrigação de falar e silenciam. Os homens heterossexuais em geral são homoafetivos, eles só respeitam, admiram, dirigem carinho e reconhecimento para outros homens.
Precisamos que os homens que se dizem aliados, mandem homens como esse fascista calarem a boca. “A gente não admite que você fale um absurdo desse”. Não pode ser uma mulher sozinha pra falar. Ela falou sozinha, ficou parecendo que é um “probleminha”, como se fosse uma questão pessoal da Eliziane Gama na defesa da Janja, como se a Janja fosse amiga dela.
O silêncio de cada homem que estava ali nos diz algo, não é? Homens de esquerda em geral se apresentam como desconstruídos, dizem reconhecer o machismo e a misoginia -mas ficam em silêncio na hora da violência contra Janja e contra Dilma.
O silêncio e a inação são parte da violência. Isso é na rua, quando uma mulher é espancada, é no Congresso, quando uma mulher é agredida. O silêncio é também a violência.
O silêncio dos homens nessa hora tem nome: broderagem. Tem que acabar a broderagem. Macharada? Sabe a frase "não basta ser não ser racista, é preciso ser antirracista"? Não basta ser não ser misógino, é preciso levantar-se contra a misoginia. “Ah, mas eu nem bato na minha mulher, né? Ah, eu pedi desculpa pra ela porque eu cheguei bêbado em casa”: isso é absolutamente insuficiente. “Ah, eu lavo a louça, eu troco a fralda do meu filho”. Isso aí é o mínimo. Os homens de esquerda têm obrigação histórica, social, ética de dizer: "cara, cala a tua boca, tu não tem o direito de tratar uma mulher assim".
Olha o jeito que ele falou da Dilma. Eu conheço poucas mulheres tão fortes como a Dilma, historicamente. Uma mulher que enfrentou a tortura, que enfrentou o golpe com altivez, com a dignidade daquela mulher, é gigante.
Rebeca Motta - Se a gente extrapola essa situação da violência política e gênero e vai pra dentro das empresas, o cenário pode ser ainda mais aterrador. As mulheres que estão dentro das grandes empresas não têm o direito-poder de simplesmente se retirar. Numa reunião em que elas estão sendo atacadas, reagem na maior parte das vezes com silêncio e cabeça baixa, porque precisam daquele emprego. E o abalo psicológico que isso causa?
Isso é assim mesmo o tempo todo, Elenira. Eu sou mãe. Já houve ocasiões de eu estar numa festa e alguém perguntar onde estava a minha filha. E ninguém pergunta isso pro pai dela, sabe? “Então, quem fica com sua filha?” Quando estava na faculdade, um professor perguntou se minha filha me chamava de mãe! Vivia em eventos fazendo cobertura jornalística de domingo a domingo e postando nas redes. Aí vem um professor, em tom de brincadeira e diz: "Ah, mas tu está sempre postando coisas aí, sua filha te chama de mãe?". É um sofrimento, uma máquina de matar sonhos e projetos.
Bruna Matos - Eu me pergunto: será que o senhor Evair Melo aguentaria dois minutos de tortura como Dilma Rousseff aguentou?
Será que o senhor Evair Melo mentiria na tortura como uma Dilma se orgulha de ter mentido, porque ela salvou a vida de companheiros que lutavam pela democracia?
Por que este deputado chama o Flávio Dino de Flávio Dino e a Dilma ele chama de mordoma? Se ele tem discordância com ambos. Por que que o Flávio Dino ele chama de Flávio Dino? E a Janja ele chama de abóbora?
Porque o comentário relacionado a roupas? Porque um dia ela usou laranja? Ele se sente confortável ao comentar a roupa? É pra isso que ele foi eleito? Pra ser comentarista de moda? É abismal a capacidade de alguns homens se sentirem confortáveis para fazer esse tipo de questão assim. E eu espero que haja algum tipo de resposta institucional, porque é isso que é necessário.
Essa fala dele sobre a Janja é exemplar. O Lula não tem um telefone, porque a Janja tem ciúmes dele. “Aquela megera” -é esse o subtexto. “Sabe aquela megera que não deixa o homem conversar?”
E o outro, o André Fernandes, que é investigado por incitação ao golpe, ao golpe de estado contra a democracia? Propõe convocar a Janja para a CPI. Porque na imagem que eles projetam, a Janja é a megera que manipula o Lula. Um cara que foi presidente desse país duas vezes e a terceira vez presidente, contra toda a bandidagem, ele é uma criança? A Janja “manda e desmanda”? Vamos desresponsabilizar os homens, a esse ponto chegamos. São crianças em corpo de adultos, manipulados pelas mulheres. É ridículo, mas é isso. Eles não conseguem entender relações de igualdade e respeito.
Elenira Vilela - homens, vocês precisam ser feministas. Porque vocês também morrem. A cada vez que isso acontece, morremos nós. Mulheres morrem, meninas morrem, muitas morrem. Somos estupradas, ganhamos menos, somos excluídas dos espaços. O Brasil tem menos mulheres no parlamento do que o Afeganistão e por aí vai. Mas a maioria dos assassinatos são homens matando homens, e vocês fazem isso por causa da misoginia que carregam.
Então, se vocês querem salvar suas próprias vidas, precisam ser feministas todos os dias. Não é por nós, é por vocês mesmos, né? Então sejam. Quando vocês assistirem a um homem sendo misógino, chamem-no de covarde. Covarde! Não sei se ele teria coragem de falar na frente da Dilma e da Janja. Covarde! Covarde! Muito! Profundamente covarde. E ninguém o desautoriza. Vocês estão contribuindo para a própria morte, não apenas para a nossa. Então, salvem-se, salvem-nos, salvemo-nos juntos, desautorizando esse tipo de canalha covarde. É triste, né?
É muito triste ele ser tão covarde e usar essas palavras, mas é isso que a Bruna falou, né? Quando se referem ao Flávio Dino, é Flávio Dino. Outro dia, percebi, Rebeca Mota, que nós não temos sobrenome. O Mauro Lopes é o Mauro Lopes. O Flávio Dino é o Flávio Dino. A Janja é a Janja. A Dilma é a Dilma. Né? Não temos sobrenome. E isso também é uma forma de tirar autoridade. Né? É também uma forma de tratar, ah, é a tia, né? Ah, não sei quem é, né? Enfim. Mas vamos nos impondo e quando esses caras se referem a nós só pelo primeiro nome, como querida, como bonitinha, não podemos aceitar. Precisamos criar autoridade, ser tratadas como mestra Vilela. Quero ser tratada assim, coordenadora geral, professora, mestre, Elenira Vilela, para ser respeitada como sou.
Rebeca Motta - Fiquei emocionada aqui com a fala das meninas várias vezes. Alguém comentou no chat, né? Todas nós temos históricos com coisas parecidas, né? As mulheres passam por situações muito parecidas na sociedade e fiquei emocionada muitas vezes relembrando de muitos casos. E fiquei emocionada também quando ela trouxe essa situação em que o professor dela fez com que ela desistisse de um sonho. Né? Fez com que ela abdicasse de um projeto de vida. Em contrapartida, as mulheres que conseguem não desistir precisam fazer um esforço psicológico muito grande, né, Elenira? Para passar por cima disso e conseguir avançar. E é muito cansativo, né? Você tem que se posicionar o tempo todo em defesa. A gente quer viver e alcançar as nossas conquistas também. Porque é muito cansativo ter que ficar nessa defesa o tempo todo, né?
Elenira Vilela - É importante dizer: toda vez que uma mulher sofre misoginia e machismo, tenho a obrigação de defendê-la. Mesmo as mulheres extrema direita. Se ela está sendo atacada pela misoginia e pelo machismo, assim como existem gays que são atacados pela LGBTfobia e são de direita, vou defendê-los.
Isto porque precisamos enfrentar o sistema. Quando estamos defendendo a pessoa da misoginia, não estamos defendendo a pessoa em si, estamos enfrentando o sistema da misoginia que está atacando aquela pessoa. “Ah, a Luiza Brunet apanhou do marido, mas ela era rica e reproduz o capitalismo e é de direita”. Não. Não importa. Ela apanhou do marido porque estava sofrendo misoginia, e vou defendê-la nessa situação. Patrícia Lellis foi estuprada pelo pastor Feliciano. E vou defendê-la disso. Isso não significa concordar com a pessoa em tudo o que ela é, nem significa que vou apoiá-la quando ela estiver reproduzindo a misoginia, sendo racista ou classista. Isso é outra coisa.
Quero tocar num tema delicado, que é das escolhas para os tribunais superiores e da polêmica que se criou entre escolher um homem branco, que foi o escolhido, ou uma mulher e, de preferência, uma mulher negra. Vamos deixar patente: o Cristiano Zanin foi escolhido porque é um homem branco. Esse foi o principal critério. “Ah! Não, Elenira”. Mas foi. Foi primeiro porque ele é um homem branco. As pessoas podem não se dar conta mas os homens brancos não têm gênero e não têm raça na nossa sociedade, porque o homem branco é tratado como ser universal, e esse é o principal traço da misoginia e do racismo estrutural.
Tratar um tipo de pessoa como ser universal é o principal traço das opressões estruturais da nossa sociedade. Não reconhecer que o Zanin foi escolhido para o STF porque ele é um homem branco, antes de tudo é não reconhecer que ele tem gênero e tem raça. E que foi muito mais fácil para ele chegar lá. Ele teve muito menos obstáculos. “Não pode indicar o Cristiano Zanin porque, afinal de contas, quando indicou o Toffoli, um homem branco, ele só fez merda”. Por que ninguém fala isso? Porque a sociedade é estruturalmente racista e misógina. Mas dizer que é preciso cuidado se indicar um homem negro porque o Joaquim Barbosa fez merda é um argumento corrente, não é. O erro dele foi o erro de todas as pessoas negras. Mas ninguém relaciona o erro do Toffoli às pessoas brancas. Nem se fará isso com o Zanin. Atribui-se a Dilma o erro de todas as mulheres. Estou cansada de ouvir isso.
Vamos rasgar a fantasia. O Cristiano Zanin foi escolhido porque é um homem branco. Antes de tudo. Só que não falamos disso. Precisamos falar disso. E precisamos escolher pessoas diferentes, porque elas têm trajetórias diferentes, e o homem branco não é o ser universal. Quem fala muito sobre isso é o Silvio de Almeida Eu não tenho que concordar com todas as mulheres. Provavelmente, não concordo com tudo o que a Rebeca fala e pensa, e ela não concorda com tudo o que eu falo e penso, e nós somos mulheres. Agora, toda mulher que sofrer misoginia na minha frente, toda mulher que sofrer machismo na minha frente será defendida por mim.
Sobre o Zanin, estou vendo a polêmica no chat. O que se diz é que não foi escolhido por ser branco, mas por ser competente, porque é maravilhoso, porque foi a melhor defesa que o Lula podia ter tido, porque... Mas não se fala que ele era sócio da companheira dele, que simplesmente desapareceu no processo da escolha dele para o Supremo? E ela teve um papel tão relevante quanto o dele. Por que não foi escolhida a Valeska Teixeira Zanin Martins? Não conheço a questão da consistência jurídica, não é minha área. Mas eu tive a oportunidade uma vez de passar meia hora conversando com a Valeska e com o Cristiano numa sala. A Valeska foi a pessoa que falou o tempo inteiro sobre muitas coisas, sobre tática, sobre a questão política daquele momento… Oras, será que ele é mais competente que ela? Não sei. Mas o tema não aparece socialmente. Ele é o “cabeça do casal”.
Não tenho a menor dúvida de que ela não foi escolhida porque é mulher e ele foi escolhido porque é homem. E que os dois são brancos. Se a Rebeca virasse amanhã ministra do STF, todo mundo iria lembrar o tempo inteiro que ela é uma mulher negra. Mas ninguém lembra que o Zanin é um homem branco, porque eles são “universais”.
A Sônia Bridi (jornalista da Globo) contou outro dia uma história bem interessante: "Você tem três escadas no metrô. A escada fixa, a escada rolante que sobe e a rolante que desce. Na sociedade, o homem branco pega sempre a escada que ele está subindo, e ela ajuda s subir. Ele sempre pega a escada rolante que sobe. A mulher branca a escada fixa, sobre degrau a degrau, tem que fazer um monte de esforço para subir. E a mulher negra tem que subir na escada que está descendo”. Faça o teste de tentar subir uma escada rolante que tá subindo. O fato é esse: o Cristiano Zanin foi escolhido porque sempre pegou a escada rolante que sobe. Por que o Cristiano e não a Valeska estava na linha de frente da defesa de Lula. Óbvio: se botasse uma mulher pra falar, Lula já começaria sua defesa em desvantagem. Ele estava ali e está no STF porque a sociedade ajudou; a sociedade não colocou na frente dele os obstáculos que colocou na frente da Valeska, que colocou na minha frente, na frente da Rebeca mais ainda. Então, ele foi escolhido porque é um homem branco.
E não é o feminismo que tem que se adaptar. É a sociedade que tem que deixar de ser machista. E racista. Não existem as mesmas condições. Vocês lembram da propaganda do Lula, era sensacional. O locutor fala assim: "Vamos fazer uma corrida?" Aí diz: "Um passo à frente de quem nunca passou fome”. “Agora Um passo à frente aqueles que os pais nunca tiveram desempregados. Um passo à frente quem estudou em escola particular. Um passo à frente.." E aí os homens brancos estão lá na frente, muito na frente. depois que estão todos esses passos à frente que os homens brancos estão lá na frente, as mulheres brancas, bem atrás, depois os homens negros e lá muito longe as mulheres negras. Aí o locutor manda todo mundo correr. Alguém acha que essa corrida é justa e vai premiar os “competentes”. Isso é meritocracia, mas amplos segmentos da esquerda acabam incorporando o pensamento e quando a gente diz que o Zanin tá no STF porque é homem branco, há um olhar de reprovação e até indignação.
O Cristiano é competentíssimo. Eu não estou discutindo isso. Assim como a Valeska é competentíssima. Assim como tem um monte de advogadas negras competentíssimas... Como a Rebeca falou sobre terem perguntado onde estava o filho dela. Podem ter certeza que nunca ninguém perguntou pro Cristiano Zanin onde é que estavam os filhos dele. E eu tenho certeza, pode trazer a Valeska Zanin aqui que ela relatará as mil vezes que perguntaram pra: "Como que você está aqui? Os seus filhos, onde é que eles estão? Eles estão com quem? Você tem babá?"
Rebeca Motta - Precisamos falar sobre isso, isso precisa estar nos nossos discursos diários, em todos os lugares? Falar sobre a representatividade das mulheres, das mulheres negras, dos LGBTs. Porque a gente morre. A gente morre. Quando você tem que abandonar um sonho porque para você não tem estrutura, não tem apoio, porque não tem condições financeiras para seguir, isso é uma morte. Eu vejo essa realidade todos os dias dentro da periferia. As pessoas nem sequer cogitam estar em espaços de poder, sequer cogitam entrar numa universidade pública porque realmente essa corrida é muito desigual. Nossas meninas engravidam muito e são raras as exceções das que conseguem voltar pra escola, voltar a estudar. São reações em cadeia que vão matando a sociedade, que vão matando os sonhos.