EXCLUSIVO

Lúcio Gregori: “Aprovar a PEC da Tarifa Zero na Câmara será uma verdadeira batalha”

Formulador da proposta que visa tornar o transporte público gratuito defendeu, com exclusividade à Fórum, uma verdadeira redistribuição de renda por meio de novo imposto para garantir o direito previsto na Constituição

Lucio Gregori durante aula pública sobre a Tarifa Zero ministrada em manifestação do Movimento Passe Livre em janeiro de 2016, em São PauloCréditos: Raphael Sanz
Escrito en POLÍTICA el

Na última quarta-feira (17) a deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP) protocolou a Proposta de Emenda Constitucional 25/2023, ou PEC da Tarifa Zero, na Câmara dos Deputados. A proposta prevê a criação de um Sistema Único de Mobilidade (SUM) que deverá abranger União, estados e municípios, além de atender as mais diversas demandas de transporte da população. Para financiar o direito, que já é previsto na Constituição, o texto prevê a regulamentação da Contribuição para Uso do Sistema Viário (ConUSV), que irá taxar o uso do transporte particular, atualmente privilegiado em relação ao sistema público, e que terá como objetivo financiar a chamada Tarifa Zero, ou seja, a gratuidade do transporte.

Com a novidade recém protocolada e aguardando avaliação da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados para seguir adiante, a Revista Fórum conversou com o engenheiro e ex- Secretário Municipal Transportes de São Paulo, Lúcio Gregori, um dos responsáveis pela formulação da ideia, para entendê-la melhor.

Ajude a financiar o documentário da Fórum Filmes sobre os atos golpistas de 8 de janeiro. Clique em https://bit.ly/doc8dejaneiro e escolha o valor que puder ou faça uma doação pela nossa chave: pix@revistaforum.com.br.

“Essa iniciativa da Erundina é algo que decorre de uma outra iniciativa dela incluída na Constituição, que é o transporte como direito social. Isso está no artigo 6º da Constituição desde 2015, só que na prática nada foi feito. Essa PEC vem para dizer, antes de tudo, o seguinte: ‘como que esse negócio de transporte como direito social vai se tornar uma coisa concreta?’”, explicou Gregori.

Na sequência, o engenheiro elencou as três proposições centrais da PEC da Tarifa Zero. “Em primeiro lugar, a instituição da tarifa zero. Porque se de fato a tarifa for zerada, o transporte efetivamente passa a ser um direito real uma vez que todos poderão utilizá-lo sem maiores restrições”, avaliou.

Em segundo lugar, Lúcio Gregori aponta para a criação do Sistema Único de Mobilidade (SUM) e explica a sua urgência.

“Hoje a mobilidade urbana é exclusivamente uma responsabilidade dos municípios, o que é um absurdo, sobretudo nas regiões metropolitanas das grandes cidades. Isso ignora o fato de que há um interesse nacional de que os transportes funcionem. Então, nesse sentido, a PEC propõe a criação do SUM, que no fundo é algo que se assemelhará ao SUS em termos de organização e atenção de diferentes demandas. Nesse caso, o transporte passa a ser um problema nacional para o qual irão contribuir prefeituras, estados e governo federal”.

A terceira questão é uma proposta, também formulada por Lucio Gregori, agora tornada um projeto de emenda constitucional, que é a autorização para que os municípios possam criar a Contribuição pelo Uso do Sistema Viário (ConUSV). A ideia é taxar o uso dos transportes privados para financiar o direito ao transporte público gratuito.

Lucio Gregori fala a participantes de manifestação do MPL em 2016. Créditos: Raphael Sanz

“Hoje, por exemplo na cidade de São Paulo – e isso ocorre em quase todos os municípios – de 70% a 75% do espaço é ocupado por automóveis. Isso significa abertura de ruas, pavimentação, guias, sarjetas, sinalização viária, pistas pintadas de vermelho, amarelo, placas que são da ordem de dezenas por quarteirão em muitos casos – todas dedicadas aos automóveis -, além de semáforos automáticos etc.. Tudo isso colocado a disposição dos automóveis que não pagam nada pelo privilégio. É como se você não pagasse nada pela coleta de lixo ou pela iluminação pública. Essa contribuição é uma forma de fazer com que os automóveis paguem pelo custo que dão ao poder público para que possam se locomover pelas cidades”, analisou.

Na sequência, Lúcio se adiantou a uma argumentação que compara o ConUSV à ideia de criar pedágios urbanos. Ele explica que são conceitos diferentes e que ao contrário dos pedágios urbanos, a taxação do transporte individual para financiamento do público é uma medida progressiva.

“Numa rua com pedágio urbano, podem passar diversas vezes aqueles que têm dinheiro. A pessoa passa 4 ou 5 vezes no mesmo dia, e está tudo bem. Agora, o sujeito que tem um carrinho 1.0 passará uma vez e olhe lá. Portanto é regressivo. Já a ConUSV é progressivo porque é proporcional ao tamanho e potência do veículo. Ou seja, quanto maior e mais potente, mais vai pagar, e quanto menor e menos potente, paga menos”, disse.

Lúcio ainda explicou que se aplicada na cidade de São Paulo, de acordo com valores que já foram calculados, a grosso modo, de R$ 3,5 por dia para os carros grandes e potentes e de R$ 1 por dia para carros pequenos e 1.0, seria possível arrecadar com o ConUSV uma receita de R$ 6,5 bilhões. De acordo com os dados apresentados por ele, o cálculo foi baseado na frota paulistana de automóveis registrada em 2019 e o valor calculado de arrecadação cobriria o gasto que a cidade teve com o sistema de transporte público daquele ano. Também esclareceu que o ConUSV poderá ser pago em 10 vezes ao longo do ano. Na prática, será um imposto de aproximadamente R$ 30 mensais para proprietários de carros populares.

“Vai ser custeado o sistema tal como ele é, privatizado ou não. Serão passados cursos a quem opera o sistema existente, além de recursos para manter o serviço, aprimorá-lo e mesmo para a instalação de novas linhas. O SUM terá se organizar de uma maneira tal a atender as mais variadas demandas relacionadas ao transporte existentes nas cidades brasileiras. É importante frisar que vai criar as condições para que os governos federal e estaduais entrem com tudo na questão dos transportes”, avaliou.

Mas apesar da euforia com a ideia de que a maioria dos brasileiros, hoje privados de tal direito, poderão se locomover gratuitamente pelas cidades, Lúcio Gregori alerta que uma verdadeira batalha se avizinha no Congresso Nacional em torno da proposta.

“Será uma guerra no Congresso Nacional em torno da discussão, aprovação, rejeição ou modificação dessa PEC. É uma luta grande que vem pela frente. É um assunto que está movimentando também o setor empresarial, que não tem mais condições de viver conforme as coisas funcionam hoje, com os contratos tais como eles são, e tudo sendo remunerado pela tarifa. A pandemia comprovou isso: desabou a demanda e com isso desabou a receita das empresas, que agora também correm atrás de soluções”.

Tarifa Zero

Lucio Gregori ainda nos explicou como surgiu a ideia, ainda no começo dos anos 90. “A proposta se iniciou a partir da minha experiência como Secretário Municial de Serviços e Obras com a coleta de lixo. Vimos que a coleta é paga por um imposto indireto. Ou seja, ninguém imagina sair de casa com um saco de lixo, pesá-lo, e em seguida pagar uma tarifa para então entregar ao lixeiro. Então por que no transporte a coisa funciona assim? A partir desse questionamento comecei a formular um sistema de pagamento indireto do transporte público como ocorre com a coleta de lixo: paga-se uma taxa própria ou contida no IPTU e usufrui-se do serviço. A partir daí formulei a ideia de fazer um fundo para que o usuário não viesse a pagar uma taxa cada vez que precisasse se locomover”.

Já o nome 'tarifa zero' foi, segundo ele, uma “inspiração angelical”. Contou que quando participou uma entrevista coletiva para comunicar o projeto, declarou: “’Não é ônibus de graça, porque isso dá a entender que o ônibus pode ser de má qualidade, então é um ônibus com tarifa zero’. Esse nome veio na hora”.

A câmara municipal sequer votou a proposta. Uma pesquisa publicada à época pela empresa Toledo e Associados apontava que 73% das pessoas aprovavam a reforma de IPTU que garantiria um fundo para a tarifa zero em São Paulo. Apenas 23% eram contra e a Câmara Municipal seguiu essa minoria. Após ser enterrada na câmara municipal de São Paulo ainda no começo dos anos 90, a ideia saiu do radar do debate público.

“O assunto renasceu após 2009, quanto o Movimento Passe Livre (MPL) me chamou para uma discussão em São Paulo e lá eu disse que o movimento deles era reacionário porque quando se pede a gratuidade para estudantes, na prática é aumentada a tarifa do usuário comum para bancar a gratuidade. Então expliquei para eles a tarifa zero, eles a adotaram como pauta reivindicatória e o assunto renasceu, Hoje temos mais de 70 brasileiras que já têm a tarifa zero e em todos os casos a demanda de passageiros duplica ou triplica”, concluiu Lúcio Gregori.