Trinta anos depois da apresentação do projeto Tarifa Zero por Luiza Erundina e Lúcio Gregori, os especialistas e alguns ignorantes especializados, em vez de aproveitar os anos e o desenvolvimento tecnológico para se aprofundar e aprender, continuam a usar os mesmos argumentos de 30 anos atrás.
Imaginemos que alguém proponha cobrar pelo uso do SUS porque assim haveria um controle da demanda, ou que diga que é preciso cobrar pela vacina contra a Covid-19 individualmente de cada vacinado por causa do seu alto custo. Ou, pior, que essa cobrança evitaria que as pessoas tomassem vacina à toa porque é "grátis".
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Quando se trata do SUS, esses argumentos são absolutamente inconcebíveis, mas ideias semelhantes são utilizadas e toleradas quando se fala na mobilidade das pessoas e na gratuidade dos transportes coletivos, a Tarifa Zero.
A importância da mobilidade é indireta, abstrata, porque ela faz a articulação de serviços e usos da cidade e não constitui um fim em si mesma. Além de chave no pensamento sobre o espaço urbano, sobretudo das grandes metrópoles, traz consigo forte carga simbólica.
Surgem daí argumentos contrários à Tarifa Zero tal qual, por exemplo, o "uso fútil" dos transportes públicos se ele não for cobrado na catraca, como se ir fazer compras, ir ao SUS ou à escola fossem futilidades, ou como se houvesse uma legião de bêbados e desempregados tão grande que fossem entupir os ônibus, trens e metrôs (se essa for a realidade, e com 33 milhões de miseráveis, estamos quase lá, o problema é outro).
Mas, podemos nos perguntar por que passear seria proibido? Uma das maiores demandas reprimidas nos transportes é justamente a do fim de semana, quando muitas pessoas não trabalham; pesquisa da Rede Nossa São Paulo mostrou que 45% da população não visitam amigos e parentes aos sábados, domingos e feriados e 50% não vão ao SUS e farmácias a quantidade necessária, porque não têm dinheiro para gastar com o transporte coletivo.
Assim se explica o expressivo aumento da demanda nas quase 40 cidades brasileiras com Tarifa Zero, que aproximadamente triplicou. A prática também desmistificou a ideia de que a Tarifa Zero tira recursos de outros serviços ou exige uma reforma tributária que cria impostos muito altos.
Nas cidades em que se implantou a Tarifa Zero quase não houve aumento de impostos, mas simples arranjos orçamentários para diminuir despesas, como gastos com aluguel de automóveis ou racionalização de impostos como o vale-transporte etc. Com a Tarifa Zero, por outro lado, aumentaram as receitas das várias atividades comerciais e de serviços.
Esse represamento de usuários (geralmente os mais pobres e vulneráveis) é justamente a base de um dos outros argumentos contrários à Tarifa Zero, segundo o qual a tarifa serviria precisamente para controlar o uso do sistema de transporte. Ou seja, a proposta da Tarifa Zero comprova para o que, realmente, serve a tarifa: impedir que os mais pobres se movimentem pelas cidades, acessem espaços que só são utilizados pelos de maior renda e efetivamente exerçam sua cidadania. Fica patente o preconceito e o absurdo de tal argumentação. Em suma, verdade é que o transporte coletivo é direito social apenas no papel, no artigo sexto da Constituição Federal. E justiça social e cidadania são conceitos abstratos, que os mais ricos e poderosos podem citar no discurso, mas poucos querem, de fato, ver na prática.
Ficam, então, as perguntas:
Por que não fazer reforma tributária para que lucros e dividendos paguem Imposto de Renda e para que a taxa maior de IR seja de até 50/60% como nos EUA e países capitalistas europeus? No Brasil, se você ganhar R$ 2.500,00 mensais de salário, paga quase R$ 200,00 de imposto e quem ganha 1 milhão de lucros e dividendos não paga nada... Essa absurda isenção de taxação só existe em nosso país e na Estônia (onde, coincidência ou não, há Tarifa Zero na capital Tallin), nem os países mais liberais do mundo abrem mão desses impostos, que representam enormes recursos e possibilidades.
Por que não realizar uma reforma de IPTU na cidade de São Paulo, onde 1% dos contribuintes detém 45% do valor imobiliário da cidade (segundo pesquisa do jornal O Estado de S. Paulo, 2019); ou, ainda, por que não se estabelece a cobrança do uso do sistema viário pelos automóveis, que ocupam 70% do espaço viário nas cidade de São Paulo e dispõem do pavimento, da pintura e sinalização (placas, semáforos e outros), tudo executado e mantido pelo poder municipal?[1]
Vale destacar que os serviços de transporte coletivo atuais são remunerados pela tarifa, que é considerada um custo do sistema, quando, na verdade, é receita. Daí ser vantagem para os donos das empresas reduzir os veículos e superlotá-los. Assim, com um mesmo custo, que é na verdade o custo operacional de movimentar os veículos, se obtém a maior receita possível, tudo dentro da lógica competitiva e exploratória do capitalismo, algo que vige nos contratos de concessão brasileiro sob esse formato desde 1817, quando D. João VI fez a primeira concessão para Sargento-Mor do palácio.
Observou-se o rebote, ou talvez mais precisamente a contradição, desse sistema de lucro no início da pandemia da Covid-19, que derrubou o volume de passageiros e diminuiu fortemente a receita, mas não os custos, levando empresários a pedir a redução da frota em circulação para diminuir seus gastos e acarretou ônibus lotados justamente em momento de se evitar aglomerações. Se a remuneração das empresas não fosse feita em grande parte pela tarifa arrecadada nas catracas, ônibus vazios não seriam um problema.
É preciso insistir que não há nenhum obstáculo técnico à Tarifa Zero. O que existe é uma escolha sobre quem e o que será financiado pelo coletivo da sociedade, de modo que a carga tributária seja mais justa e que os serviços públicos, como hospitais, creches, escolas e universidades, por exemplo, sejam de qualidade e acessíveis a todos. Em outras palavras, todos pagam e alguns usam, para o benefício de todos. Portanto, é preciso definir no corpo da sociedade o que realmente deve ser público e como essa conta será dividida socialmente, diferente de hoje, em que quem paga mais é justamente quem tem menos. Trocando em miúdos: a coletividade decide, os engenheiros dimensionam, os contribuintes pagam e a sociedade como um todo se beneficia.
Sendo assim, fica explicado por que defender a cobrança de tarifa, mesmo que "mínima", segundo alguns, e rejeitar a Tarifa Zero, pois com a implantação de um sistema sem catracas os “de baixo” terão efetiva mobilidade e acessarão lugares que são exclusivos dos “de cima”, que pagarão mais impostos e taxas, já que desembolsam relativamente pouco, conforme apresentado anteriormente. Como se diz, “o resto é o resto”, e serve de sobrevivência para os ditos especialistas, que têm na realidade a especialidade de defender o que aí está, em favor dos privilegiados.
[1] Já existe uma proposta de projeto para a criação da CONUSV (Contribuição pelo Uso do Sistema Viário), que seria de R$ 1,00 a R$ 3,00 diários e pagos em até dez vezes ao ano, cobrados em função do tamanho e potência dos veículos automotores. Essa contribuição geraria, com a frota paulistana de 2019, cerca de 6,5 bilhões de reais, quase o suficiente para bancar a TARIFA ZERO em São Paulo naquele ano.
*Luiza Erundina é deputada federal pelo PSOL e ex-prefeita de São Paulo.
**Lúcio Gregori é engenheiro civil e ex-Secretário Municipal de Transportes de São Paulo na gestão de Luiza Erundina.
***Coautores: Mauro Zilbovicius e Márcia Sandoval Gregori
***Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.