Na última terça-feira (18), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estava em reunião com os chefes dos três poderes, em Brasília, e quando surgiu na pauta a recente escalada de ataques a escolas que o país vem sofrendo, deu uma declaração infeliz, associando os autores dos violentos ataques a pessoas com deficiência mental e condições correlatas. Após uma enxurrada de críticas, Lula entendeu a razão pela qual a frase foi infeliz e, no último sábado (22), fez questão de se retratar publicamente.
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“Gostaria de pedir desculpas sobre uma fala que fiz na semana passada, durante reunião sobre violência nas escolas. Conversei e ouvi muitas pessoas nos últimos dias e não tenho vergonha de assumir que sigo aprendendo e buscando evoluir. Quero me retratar com toda a comunidade de pessoas com deficiência intelectual, com pessoas com questões relacionadas à saúde mental e com todos que foram atingidos de alguma maneira por minha fala”, declarou o presidente por meio da sua conta no Twitter.
O episódio despertou o debate sobre como tratamos a saúde mental, tanto no âmbito privado e cotidiano, como em termos de políticas públicas. Após a fala infeliz e a retratação, Lula prometeu desenvolver políticas públicas que busquem incluir as pessoas com deficiência, seja física ou psicológica, fazendo com que tenham condições de viver e se desenvolver como qualquer outro cidadão.
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A diferença para o último governo é gritante. Em dezembro de 2021, meses após escândalos referentes ao combate à pandemia virem à público, o então governo Bolsonaro atacou os autistas (Clique aqui e saiba mais sobre autismo). Uma comissão do governo defendeu o uso de eletrochoques em pessoas que convivem com tal condição. E assim como outros factoides bolsonaristas, a prática não tem qualquer fundamento científico para pessoas com autismo e só é indicada para poucas situações, muito específicas, sob anestesia e com consentimento do paciente.
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Relembre a proposta ‘medieval’ do governo Bolsonaro
Na ocasião, um documento elaborado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), vinculada ao Ministério da Saúde, sugeriu o uso de eletroconvulsoterapia em pacientes com grau elevado de autismo, ou com comportamento violento em decorrência do transtorno, embora esse seja um procedimento psiquiátrico muito restrito e apenas possível em casos bem específicos, com anestesia e consentimento do paciente, sem qualquer indicação ou eficácia comprovada em casos de autismo.
A eletroconvulsoterapia, chamada nos meios técnicos também de ECT, assim como a estimulação magnética transcraniana, a EMT, são procedimentos em geral aplicados a pacientes com quadros gravíssimos de depressão e incontrolável ideação suicida, assim como para situações de catatonia, quando o paciente fica imóvel, sem esboçar movimento corporal algum.
A proposta constava no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT), que admitiu claramente não haver indicação desse tipo de tratamento em pacientes com autismo, reconhecendo que a alternativa sequer aparece nas diretrizes e orientações internacionais, uma vez que não há resultados que comprovem benefícios para esse público. Ainda assim, a normativa deixa a eletroconvulsoterapia como uma possibilidade, baseada numa chancela de uma inespecífica e genérica "equipe especializada".
Nos casos de pessoas diagnosticadas com o chamado Transtorno do Espectro Autista (TEA), os tratamentos indicados ficam restritos a medicamentos e acompanhamento e intervenção comportamental, jamais o uso da ECT, mesmo em casos de agressividade, autoagressividade ou perda e limitação de movimentos nesses pacientes, conforme assinalou, à época, o psiquiatra de crianças e adolescentes Ricardo Iugon Arantes, em entrevista ao portal Terra.
"Eles deram uma espécie de 'salto duplo carpado' para tentar justificar essa possibilidade que nunca deveria constar num documento oficial. Não discordo que haja indicações precisas e técnicas para a ETC e EMT, mas autismo certamente não é o caso", falou Arantes.
Também é época, a Fórum ouviu o então deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), médico e ex-ministro da Saúde do governo Dilma Rousseff. Padilha explicou que, quando a Conitec foi criada, a intenção era justamente permitir que um colegiado e representantes de vários setores ligados à Saúde discutissem as terapias aplicadas a pacientes, por meio de evidências científicas, não deixando o tema nas mãos do governo. Ele frisa que não há, de fato, evidência sobre a eficácia desse tipo de procedimento em pessoas com autismo.
"Mesmo sem evidências científicas, o Ministério da Saúde colocou para consulta pública uma atualização do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para o Comportamento Agressivo no Transtorno do Espectro do Autismo. No documento, o MS propõe a 'aplicação da eletroconvulsoterapia para controle de comportamento agressivo de autista'. Quando criamos a Conitec por lei, quando fui ministro, era exatamente para que a decisão sobre uma terapia no SUS fosse debatida e sustentada com evidências científicas, não ficasse na mão do governo de plantão. Por isto temos que nos posicionar tecnicamente sobre este tema enquanto estiver na fase de consulta pública. É preciso se mobilizar contra qualquer decisão de cuidado com a vida humana sem evidência científica. O histórico do uso da eletroconvulsoterapia nos transtornos mentais p're SUS é um histórico de agressões aos direitos dos pacientes e suas famílias. Um governo que nega a ciência e ameaça técnicos da Anvisa favoráveis a vacina, não tem a menor condição de fiscalizar adequadamente o uso de terapias como essa. Já estou em contato com as entidades e associações da pauta de saúde mental e me somo à nota técnica que eles divulgaram. Como deputado federal, nosso mandato convocará Audiência Pública para debater esse tema tão logo a Câmara volte do recesso", disse Padilha.
Entidades se manifestam
Uma nota de protesto à Consulta Pública do Conitec foi emitida dias depois do anúncio da proposta por um grupo de entidades contrárias ao uso da eletroconvulsoterapia. Nela, mais de 200 organizações da sociedade civil se manifestam contrariamente às orientações constantes no documento proposto pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.
“Nesse sentido, é preocupante notar que as expressões “consentimento“, “autorização”, “licença” e “concordância” não aparecem no documento da Conitec, o que sinaliza o risco de naturalizar intervenções sobre o corpo de pessoas autistas sem que sequer se cogite o seu consentimento”, destaca um trecho da nota.