Durante a pandemia, Edinho Silva, prefeito pela quarta vez em Araraquara (SP), sofria ataques constantes do então presidente Jair Bolsonaro. Enquanto Bolsonaro negava a gravidade da crise sanitária e insistia em medicamentos sem eficácia comprovada, como a cloroquina, Edinho seguiu a ciência à risca. Sua gestão da pandemia ganhou destaque internacional. Em 2021, o jornal francês Libération destacou a gestão municipal como exemplar. Edinho começou a escrever um livro para contar os desafios que enfrentou naquele momento, no entanto, no dia 8 de janeiro, o presidente Lula estava na cidade acompanhado da primeira-dama, Janja, e a obra ganhou mais um capítulo. E assim, nasceu o livro Uma cidade na luta pela vida – da pandemia ao 8 de janeiro (editora Alere), lançado no dia 13/11 na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo.
Confira a seguir os principais trechos de entrevista com Edinho Silva ao programa Fórum Onze e Meia.
Experiência de gestão na pandemia
Quando decido escrever o livro, em janeiro de 2023, o objetivo era registrar uma experiência de gestão. Eu sempre disse, durante a pandemia, e reafirmo, que nenhum gestor que conviveu com a pandemia, no final de 2019 até o início de 2022, tinha nas mãos um manual de como enfrentar uma pandemia.
O processo decisório, o processo de construção das decisões, que levou a instituição de políticas públicas, todas elas razoavelmente inovadoras, porque os desafios eram novos, era um processo muito difícil, e não tinha como buscar referencial.
Eu, em janeiro, pensei comigo, olha, isso tem que ser registrado, porque espero que nunca mais o Brasil viva algo semelhante, mas se nós tivermos uma outra ocorrência parecida com o que foi a Covid-19, que tenha registro das experiências de enfrentamento, porque foi muito difícil. Foi muito complicado, porque era decidir diante do novo, quando, muitas vezes, se colocava uma falsa contradição entre a vida e a economia, que é um absurdo, mas esse debate existiu muito. A pressão, principalmente dos empresários que não tinham fôlego econômico para suportar o distanciamento, o lockdown, o fechamento de comércio.
Eu sempre fiquei muito sensibilizado, porque eram setores da nossa economia que não tinham muito para onde ir, não tinham para onde correr, mas nós tínhamos que evitar que o paciente contaminado entrasse em contato com o paciente saudável, e assim nós pudéssemos evitar que a contaminação crescesse numa curva vertiginosa, levando ao colapso do sistema de saúde.
O processo de decisão do gestor diante de tantas dificuldades, dele ter que construir posições, muitas vezes, contraditórias com a sociedade, em contradição com os setores sociais, não foi um processo simples.
O objetivo do livro, fundamentalmente, era registrar uma experiência de gestão no enfrentamento à pandemia, que ainda, no caso de Araraquara, nós tínhamos alguns agravantes, como, por exemplo, a oposição sistemática do presidente da República, Bolsonaro, a tudo aquilo que Araraquara fazia.
Bolsonaro X Araraquara
Para que eu pudesse recuperar os fatos durante a produção do livro, eu tentei levantar quantas vezes o Bolsonaro atacou Araraquara. Quando eu passei de uma dezena, eu desisti, porque eram dezenas de vezes que ele mencionava Araraquara, ou nas lives de quinta-feira, que eram críticas mais pesadas, ou nos quebra-queixos que ele se dispunha a fazer na porta do Palácio da Alvorada, ou nas entrevistas, ou nas viagens, enfim.
Ele sistematicamente atacava Araraquara, e eu perguntava, naquele momento, por que o presidente polariza com uma cidade do interior de São Paulo?
Eu tinha sido ministro de Estado, eu era considerado, naquele momento, uma das poucas lideranças do partido a administrar cidades médias e grandes. As minhas posições tinham repercussão na imprensa, a imprensa internacional repercutia tudo que Araraquara fazia.
Araraquara era a negação do que o Bolsonaro defendia publicamente. Ele defendia que não tinha que ter distanciamento, minimizava a pandemia, chamando de gripezinha, desestimulava a utilização de máscara, quando nós começamos a falar de vacina, ele não incentivava a vacinação.
Nós éramos a contradição, era o exemplo contraditório de tudo aquilo que o Bolsonaro defendia. E o Bolsonaro não só nos atacava, como articulou iniciativas políticas contra a cidade de Araraquara, como, por exemplo, quando ele mobiliza o 2º Exército, junto com a Ceagesp, para trazer saquinhos de legumes descartados pela Ceagesp, para fazer mutirão de distribuição de alimento, dizendo que em Araraquara as pessoas estavam passando fome e que as pessoas estavam comendo carne de cachorro.
E nós tivemos, na época, veículos de comunicação ligados ao Bolsonaro, divulgando isso como um fato, como uma notícia. E também, no outro episódio, a família Bolsonaro vem a Araraquara propor meu impeachment. Tudo isso eu recupero no livro e mostro como foi ser prefeito enfrentando as adversidades impostas pela pandemia e também enfrentando o governo Bolsonaro.
E, quando eu recupero aquilo que a Araraquara fez, eu acabo recuperando no livro também as experiências administrativas que criaram as condições para que a Araraquara pudesse fazer aquilo que fez.
Eu brinco, eu até usei essa frase quando eu estava elaborando o livro, que é, olha, o que nós tivemos na pandemia não foi um raio em céu azul. A cidade tinha um histórico de políticas públicas, nós tínhamos um acúmulo de participação popular, de conselhos organizados, de orçamento participativo, um governo que tinha um enraizamento social, que criou as condições para que nós pudéssemos também ter força política e força organizativa para fechar a cidade quando ela foi fechada, fazer lockdown, utilizar métodos de bloqueio da doença, fazer telemedicina, fazer visitação casa a casa, criar uma rede de solidariedade para que as famílias que estavam em vulnerabilidade pudessem ser atendidas pelos nossos programas de segurança alimentar.
Em 8 de janeiro, Lula estava em Araraquara
Por ser um dirigente político, eu fui um dos coordenadores da campanha de Lula em 2022. Participei da coordenação, liderada pela presidenta Gleisi, onde eu tive a alegria de dividir tarefas na área de comunicação com o Rui Falcão. No livro, eu chamo a eleição das nossas vidas. Porque de fato é.
Se nós não tivéssemos derrotado o Bolsonaro em 2022, certamente tudo o que ele fez na pandemia, o descaso dele com a vida humana, o descaso dele com os brasileiros, teria sido legitimado.
E além desse descaso, teria sido legitimado um presidente, um governo que legitimou no Brasil a homofobia, o racismo, o machismo, que atacava todos os dias as políticas públicas, que propiciava a possibilidade de ascensão social das famílias excluídas.
Um presidente que reivindicava o autoritarismo, a violência, defendia que cada brasileiro tivesse uma arma, enfim. A vitória do Bolsonaro em 22, eu não tenho nenhuma dúvida, legitimaria um governo inspirado no fascismo e também um governo com vocação autoritária.
O Brasil poderia estar vivendo uma experiência muito ruim de enfraquecimento da democracia. Eu acabo recuperando 22, e relato a importância dessas eleições.
Também relato um pouco o meu papel nas eleições e o quanto foi importante eu ter convivido com o bolsonarismo na pandemia e ter conseguido enfrentar, inclusive, os métodos de comunicação do bolsonarismo, o quanto isso foi importante, esse acúmulo, para que eu colaborasse com a campanha do presidente Lula em 2022.
E, claro, por isso que o livro chama uma cidade que faz a defesa da vida, que luta pela vida, mas também faz o recorte da pandemia ao 8 de janeiro.
Eu fecho o livro, e não poderia ser diferente, com um capítulo que recupera a presença do presidente Lula em Araraquara, em 8 de janeiro, quando o Brasil sofreu uma tentativa de um golpe de Estado.
Hacker de Araraquara
É um livro de gestão, fundamentalmente, mas, claro, um livro que também trata de política. A capa recupera uma capa da primeira versão do livro Macunaíma, que foi escrito em Araraquara, poucos sabem. O Mário de Andrade tinha uma relação muito forte com a cidade de Araraquara, inclusive passou uma parte da sua infância aqui. E eu recupero Macunaíma porque eu digo que Araraquara pariu o herói improvável duas vezes. Primeiro, Macunaíma, de Mário de Andrade. Segundo, Walter Delgatti, que é o hacker de Araraquara, que é outra versão, o herói improvável do século XXI. Ele salva a República, quando desnuda as armações da Lava Jato e cria as condições, claro, em uma atuação brilhante na época da Valesca e do Zanin, advogados do presidente, mas cria as condições para que toda a tese de defesa do presidente Lula pudesse prevalecer de forma documental e, a partir dali, se restabelece a normalidade institucional do Brasil e nós criamos as condições para que a democracia pudesse ser fortalecida, na minha avaliação, com a sua maior materialização, que foi a vitória do presidente Lula em 2022.
A sala de crise do golpe
Em 8 de janeiro, no gabinete, o presidente Lula toma conhecimento de tudo aquilo que estava acontecendo em Brasília. Eu até recupero isso no livro.
Na verdade, no dia 7, no sábado, quem me telefona dizendo que viria até Araraquara para prestar solidariedade é a Janja, muito sensibilizada porque Araraquara tinha sofrido no final de dezembro, um desastre, literalmente um desastre ambiental. Nove pontos da cidade foram atingidos, uma família inteira perdeu a vida, porque o veículo em que a família estava caiu dentro de um rio, a correnteza levou. Eu fiquei muito sensibilizado com aquele gesto da Janja, e começamos a organizar a vinda da Janja.
Isso na manhã do sábado, dia 7. No final da manhã, o presidente Lula me liga e diz, olha, eu vou com a Janja, eu vou junto com ela, e quero que você organize aí uma reunião de trabalho, nós vamos ajudar a cidade de Araraquara.
Nessa sala que eu estou, nós organizamos para que aqui ocorresse uma reunião com secretários, os técnicos, os profissionais, necessários para que a gente elaborasse um plano de ação para que a cidade fosse recuperada.
Quando eu vou encontrar o presidente no aeroporto da Embraer, que fica aqui a 10 quilômetros de Araraquara, a Janja cede o seu lugar no carro, para que eu venha conversando com o presidente e falando daquilo que a cidade estava vivendo.
No caminho, o Stuckert [fotógrafo do presidente] me liga e pede que eu mostre ao presidente Lula um vídeo que ele havia mandado no meu celular.
Eu abro o vídeo, já são as cenas da invasão e depredação do Congresso Nacional, eu olho aquilo, é claro, eu tinha a exata dimensão de que aquilo era muito grave, porque nós acompanhávamos pela imprensa que haveria uma manifestação em Brasília. Todos nós tratávamos como uma manifestação daqueles que não aceitavam a vitória do presidente Lula.
Chegamos na Prefeitura, entramos na minha sala, ligamos as TVs que cobriam ao vivo tudo que acontecia em Brasília. O presidente toma conhecimento da depredação do Palácio do Planalto, inclusive da sala da Janja, e aquilo foi gerando uma indignação. Todos nós tínhamos noção, nós que estávamos com ele, de que o que estava acontecendo em Brasília não era uma manifestação, era uma tentativa de golpe de Estado, e a passividade com que as forças policiais conviviam com tudo aquilo, segurança do Palácio do Planalto, segurança da Câmara, a Polícia Legislativa, a segurança do Supremo.
O livro faz a recuperação de tudo isso e também todo o processo em que o presidente faz telefonemas, conversa com os chefes dos poderes, conversa com as lideranças políticas do país, com as lideranças partidárias e toma a decisão correta de intervir na segurança pública do Distrito Federal e depois toma outras medidas, que restabelecem a condução do país.
O presidente traz o Estado brasileiro para as suas mãos, reconduz o país ao mínimo de normalidade, cria as condições para que ele, inclusive, retornasse a Brasília e, a partir de então, nós vimos o quanto que o presidente unificou o Brasil com todos os governadores, todos os poderes, na defesa da democracia.
GLO é golpe
Em diálogos na minha sala, após várias hipóteses colocadas pelos ministros que estavam em Brasília, após Lula ordenar que se criasse um gabinete de crise em Brasília, na sede do Ministério da Justiça e todos os ministros foram para lá, vários diálogos foram estabelecidos. Quando a ideia da GLO começa a criar força, tem que se reconhecer por mérito, a Janja faz uma intervenção dizendo o que representava a GLO, já que ela tinha debatido essa hipótese quanto da posse por conta da ocupação na frente dos quartéis, por aqueles que não aceitavam o resultado eleitoral.
O presidente liga para o Jorge Messias, conversa com o Flávio Dino, com o Zé Múcio, com o próprio G. Dias, com Padilha, conversa com a Gleise, enfim, com os representantes presidentes dos poderes instituídos, Pacheco, Arthur Lira, Rosa Weber, o Alexandre Moraes, e toma a decisão de não ser GLO o caminho para a estabilidade que o Brasil precisaria retomar. A construção da estabilidade seria pela via democrática e não pela força, porque a GLO é um ato de força. E ali penso que o presidente foi genial, como foi em todo o processo decisório daquele domingo, porque a decisão de não negar a GLO pela GLO, mas sim de fortalecer a democracia, faz com que as instituições se fortaleçam, a ordem pública seja retomada pelo caminho da democracia, pelo caminho da junção de forças, da construção da unidade em todos os poderes. Foi efetivamente um gesto histórico superar uma tentativa de golpe pelo campo da democracia.
*Uma versão reduzida desta entrevista foi publicada na Revista Fórum semanal digital. Clique aqui e baixe a sua edição grátis.