ATIVISMO JUDICIAL

Decisão de Nunes Marques que beneficia Silvinei Vasques soa como protecionismo político, diz advogado

Ministro do STF indicado por Bolsonaro derrubou quebras de sigilo do ex-diretor da PRF que tinham sido aprovadas pela CPMI dos Atos Golpistas

Nunes Marques, do STF, derrubou quebras de sigilo de Silvinei Vasques que tinham sido aprovadas pela CPMI.Créditos: /Fotos: STF/Agência Senado/Divulgação
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Especialistas ouvidos pela Fórum criticaram a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Kassio Nunes Marques, indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro à Corte, que nesta terça-feira (2) derrubou as quebras dos sigilos telemático, telefônico, fiscal e bancário de Silvinei Vasques, ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal (PRF), preso desde agosto por suposta interferência nas eleições de 2022.

As quebras de sigilo haviam sido aprovadas pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos Golpistas, mas Nunes Marques as revogou para preservar a privacidade de Vasques, citando a necessidade de proporcionalidade na medida. O ministro também justificou que a CPMI não teria competência para investigar eventos ocorridos antes de 8 de janeiro de 2023, afirmando que a tentativa de interferência nas eleições não está relacionada aos atos golpistas daquela data - sendo que essas manifestações antidemocráticas foram fomentadas, principalmente, pelo ímpeto de se reverter o resultado das urnas que elegeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 

O principal fato que levou Vasques à prisão e que é o objeto de investigação da CPMI foi a operação deflagrada pela PRF em 30 de outubro de 2022, dia do segundo turno das eleições, quando foram realizados bloqueios de "fiscalização", principalmente em cidades do Nordeste, que teriam por objetivo impedir que eleitores de Lula chegassem aos locais de votação.

Silvinei Vasques em depoimento à CPMI dos Atos Golpistas (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

A CPMI havia aprovado as quebras de sigilo de Silvinei Vasques, que inclusive mentiu ao colegiado quando prestou depoimento, para aprofundar as investigações. Nunes Marques, entretanto, cassou o ato da CPMI. 

Ativismo judicial e protecionismo político

À Fórum, o advogado criminalista Berlinque Cantelmo avaliou que a decisão de Nunes Marques ao anular as quebras de sigilos de Silvinei Vasques que tinham sido aprovadas pela CPMI representa "um grande e perigoso contrassenso que se perfaz em indevido ativismo judicial". 

"Invade princípio da separação dos poderes assim como também gera sensação de contaminação de quem julga com determinada parcialidade pautada por ingerência na autonomia investigativa da CPMI", analisa Cantelmo. 

O advogado vai além e destaca, ainda, que a postura do ministro do STF com relação ao caso do ex-diretor da PRF "soa como protecionismo político". 

"Considerando a existência de provas pré-constituídas contra o ex-chefe da PRF, mesmo que em perspectiva indiciária, importante frisar que a autonomia e a liberdade investigativa da CPMI não deveriam sofrer relativização através de decisão judicial que soa como um certo protecionismo político ao investigado", atesta. 

O ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro ao STF (Foto: Fellipe Sampaio/Divulgação)

Advocacia administrativa 

Em entrevista ao Jornal da Fórum desta terça-feira (3), Rogério Dutra, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF), foi na mesma direção que Cantelmo e disse que a decisão de Nunes Marques derrubando as quebras de sigilos de Silvinei Vasques pode configurar, inclusive, advocacia administrativa - crime previsto no Código Penal que trata da utilização indevida das facilidades de cargo ou função, por servidor público, no intuito de fazer prevalecer ou fazer influir o seu peso funcional sobre a prática de atos administrativos.

"Pelo que parece, se o Nunes Marques fez isso com esses argumentos, como professor, isso me parece algo que pode ser visto, inclusive, como advocacia administrativa. O funcionário público beneficiar o indivíduo privado através de sua ação, a partir de sua posição pública. Isso é muito grave", analisa Dutra. 

"Isso, na verdade, denota que nós temos ali um 'radical livre' no STF. Imagine mais 4 anos de Bolsonaro, com mais 'terrivelmente extremistas' no STF, como a gente ficaria. Uma insegurança jurídica. Esse período de ativismo, o próprio STF deu um jeito de enterrar em 2020. Entendeu que acabou esse momento histórico de ativismo Contra Legem, que interpreta de forma muito imaginativa a Constituição, para além do texto. Acho que o STF entrou nos trilhos e o Nunes Marques me parece que hoje é esse cidadão isolado", emenda o professor de Direito. 

Segundo Rogério Dutra, "muito provavelmente" a decisão de Nunes Marques será revista pelo plenário da Corte. "De certa forma, por enquanto, estamos salvos das decisões excêntricas de Nunes Marques porque temos o STF organizado para combater o extremismo de direita. Isso é muito bom para a democracia", diz.

Contraponto 

Também ouvido pela Fórum, o advogado Pedro Gurek, especialista em Direito Penal, discorda da posição dos outros especialistas consultados pela reportagem. 

Segundo Gurek, “embora não se desconheça as prerrogativas dos parlamentares na condução de investigações em âmbito de CPI ou CPMI, ainda assim é necessário reconhecer que a jurisprudência do STF garante a viabilidade do controle judicial das deliberações que implicam em quebras de sigilo – de comunicações, telefônico e bancário -, notadamente para avaliar a existência de fundamentação adequada para a medida excepcional que devassa importantes direitos fundamentais, como a privacidade". 

"Por isso mesmo, a quebra de sigilo é uma ferramenta poderosa que deve ser usada com cautela, justificativa clara e estrita relação com a investigação. Neste caso, a decisão do ministro Nunes Marques bem enfatiza que a justificativa apresentada era genérica – alcançando todos que tiveram envolvimento omissivo ou comissivo com o fato - e extrapolava os eventos sob escrutínio pela CPMI, determinando a devassa de informações desde janeiro de 2022 (muito antes dos eventos realizados em 8 de janeiro de 2023). Isso bem ilustra a importância de manter a proporcionalidade e a precisão nas investigações, impedindo a prática de fishing expedition (que nada mais é do que a busca indiscriminada de evidências que não estão relacionadas ao objeto da investigação)", prossegue o advogado. 

CPMI vai recorrer 

Em sessão da CPMI dos Atos Golpistas desta terça-feira (2), a relatora do colegiado, senadora Eliziane Gama (PSD-MA), anunciou que a Advocacia do Senado vai recorrer da decisão de Nunes Marques que derrubou as quebras de sigilo de Silvinei Vasques. 

"A CPI é um instrumento legal do Congresso Nacional. E a decisão que foi proferida pelo ministro, se for repetida por outros parlamentares, acaba com esse instrumento. A decisão impede que esta comissão, ao final dos trabalhos, não use absolutamente nada contra o ex-diretor da Polícia Federal Silvinei Vasques”, declarou Eliziane. 

“Uma decisão dessa magnitude tem de se cumprir, claro, é o que diz o processo constitucional brasileiro. Mas eu preciso deixar aqui o meu lamento. Lamentar essa decisão. Para além de recorrer, e a advocacia do Senado fará isso, entendo que temos de sentar e procurar remédios constitucionais. E pedir que o ministro Nunes Marques cumpra também o princípio constitucional de remeter essa decisão ao pleno (do STF). É inaceitável, inadmissível, que uma CPMI, depois de 5 meses de trabalho, ao final, não possamos utilizar, juntar todo o volume de informações, de investigação que fizemos ao longo de meses”, disse ainda a relatora.