Basem Naim, médico, é presidente da Comissão de Relações Exteriores de Gaza e um dos integrantes do Comitê de Relações Exteriores do Hamas. Ele falou com exclusividade à TV Fórum na madrugada desta quarta-feira (18). Foi a primeira entrevista concedida por um dirigente de Gaza e do Hamas à mídia brasileira desde a ação palestina de 7 de outubro. Suas declarações são de alto impacto.
O médico não revelou de onde concedeu a entrevista, pelos evidentes riscos à sua vida, mas aparentemente estava em algum lugar de Gaza. Eu tive a oportunidade de entrevistar o doutor Naim em maio de 2021, na agressão anterior de Israel contra os palestinos, que resultou em mais de 200 mortos.
Assista aqui.
Algumas das declarações de Basem Naim, antes de apresentar, logo abaixo, a íntegra da entrevista:
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“Qualquer povo em lugar sob ocupação tem o direito de resistir a ela, com o uso de todos os meios, de todas as ferramentas, incluindo a resistência armada”
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“Muitos grupos de resistência situados na Faixa de Gaza participaram [da ação contra Israel], como o Hamas, a Jihad Islâmica, a FPLP (Frente Popular para a Libertação da Palestina) e outros grupos”
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“Eu acho que qualquer um, no nosso caso, em nossa situação, iria tentar quebrar as paredes dessa prisão, para se livrar dessa prisão. Portanto, foi um ato de defesa. Nós defendemos nossa vida, nossos filhos e nosso futuro. O dia 7 não foi uma agressão”
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“O comandante superior da Brigadas al-Qassam [braço armado do Hamas] orientou a todos: “não machuque civis, não mate civis”. Mas nós temos que lembrar que há bases militares, campos militares construídos dentro dos kibutzim”
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“Se olharmos para o atual governo de Israel, os próprios israelenses, até alguns membros do próprio governo, que descreveram ministros como Bezalel e Ben-Gvir como terroristas”
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“Nós estamos esperando novos massacres em outros hospitais”
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“Nós esperamos apoio dos países árabes, dos países islâmicos, dos países ao redor do mundo, de todas as pessoas livres ao redor do mundo, para parar esse genocídio”
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“O Brasil é um grande país, um país influente, o Brasil é amigo da Palestina, um amigo do povo palestino, e agora o Brasil é o chefe do Conselho de Segurança, é membro dos Brics, nós pensamos que o Brasil pode fazer muito para parar essa loucura”
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“Eu tenho que dizer que, infelizmente, nós estamos chocados e surpresos pela posição brasileira. Estávamos esperando mais, uma posição totalmente diferente. Nós estávamos esperando alguém falar sobre soluções políticas”
Essas e outras declarações muito fortes e informações inéditas e revelações impressionantes estão na entrevista, cuja íntegra você lê a seguir:
Fórum - O senhor é o presidente da Comissão de Relações Exteriores de Gaza, função equivalente à de um ministro das Relações Exteriores. Quais são as atribuições dessa comissão e as suas especificamente? E com quantos países e organizações Gaza se relaciona?
Basem Naim - Obrigado por me convidar a conversar com sua audiência. Eu sou o presidente da Comissão de Relações Exteriores de Gaza. Esta é uma organização situada e baseada em Gaza. Estamos em contato com a maioria dos países do mundo e a maioria dos centros de pesquisa no campo de relações políticas e internacionais na Europa, na América Latina, no oeste da Ásia, nos países árabes e islâmicos e na África.
P - O Hamas é acusado de ser um grupo terrorista por Israel, Estados Unidos e outros países com o apoio dos grandes grupos de mídia. O Hamas é um grupo terrorista?
R - Muito obrigado novamente por esta pergunta muito importante, porque infelizmente os países ocidentais, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, estão definindo o que é um terrorista e o que não é um terrorista. Acredito que a lei internacional é muito clara aqui. Qualquer povo em lugar sob ocupação tem o direito de resistir a ela, com o uso de todos os meios, de todas as ferramentas, incluindo a resistência armada. Portanto, é muito importante diferenciar o povo palestino, que está se defendendo, resistindo à ocupação, procurando viver livre e digno, como todas as outras pessoas, e alguns grupos aqui ou lá que estão atacando civis. Nós somos lutadores da liberdade. Nós estamos lutando pelos nossos direitos humanos, para sermos livres e vivermos em uma vida digna e dando ao nosso povo o direito de retornar para suas casas e vilas.
P - Além do Hamas, que outras forças palestinas participaram da ofensiva contra Israel no dia 7 de outubro?
R - Muitos grupos de resistência situados na Faixa de Gaza participaram, como o Hamas, a Jihad Islâmica, a FPLP [Frente Popular para a Libertação da Palestina] e outros grupos.
Reforço que a Faixa de Gaza é cercada por essas forças armadas israelenses, à beira das nossas fronteiras. Por mais de 17 anos eles estão sufocando 2 ,3 milhões de palestinos, e transformaram a Faixa de Gaza em uma das maiores prisões de fogo aberto.
Eu acho que qualquer um, no nosso caso, em nossa situação, iria tentar quebrar as paredes dessa prisão, para se livrar dessa prisão. Portanto, foi um ato de defesa. Nós defendemos nossa vida, nossos filhos e nosso futuro. O dia 7 não foi uma agressão.
P - Como o senhor explica os ataques a civis, especialmente a festa (rave) que acontecia no Kibbutz Reim, situado perto de Gaza, a seis quilômetros, e que teve 260 mortes?
R - Veja, desde o início desse ato de defesa, as instruções para os lutadores eram claras. O comandante superior da Brigadas al-Qassam [braço armado do Hamas] orientou a todos: “não machuque civis, não mate civis”. Mas nós temos que lembrar que há bases militares, campos militares construídos dentro dos kibutzim, estão no meio dos kibutzim.
Segundo, nós temos muitas provas que alguns israelenses, e isso também foi pela mídia de Israel, que algumas pessoas foram mortas por fogo israelense, porque eles acreditam na doutrina Aníbal. A doutrina Aníbal significa que qualquer israelense que tenha sido capturado ou se tornado hostil, o Exército se dá o direito de matá-lo, de matá-lo junto com o seu captor. [Nota minha: a doutrina Aníbal é uma regra não escrita mas amplamente conhecida em Israel segundo a qual qualquer comandante israelense pode tomar uma decisão sem constrangimentos para frustrar um sequestro, mesmo que coloque em risco a vida do sequestrado ou de civis da região. A regra é considerada detestável mesmo entre integrantes das Forças Armadas de Israel, especialmente os de baixa patente, e afirma taxativamente que a missão é evitar que os sequestradores fujam com as vítimas, mesmo que isso possa custar a vida dos soldados israelenses capturados].
A terceira coisa é que, no momento em que, de repente, tudo colapsou e caiu e as fronteiras abriram com a ação palestina, houve um caos. Mas eu posso enviar muitos vídeos mostrando que nossos lutadores ajudaram os civis a voltar para suas casas. Os israelenses, entretanto, falaram de bebês envenenados e degolados, mas não têm como mostrar uma foto ou um vídeo de um bebê envenenado.
Eles falaram de mulheres envenenadas. Isso não foi provado em nenhum momento. Foi uma narrativa feita pelas mídias israelenses, pelos políticos israelenses, para interromper a nossa narrativa de que nós somos um povo sob ocupação e que nossas ações são para defender nosso povo.
E deixe-me lhe dizer algo. Uma semana antes do 7 de outubro, Israel matou sete crianças dentro de Gaza. Só em 2023, 253 palestinos foram mortos em checkpoints na Cisjordânia. Nós estamos sofrendo quase todos os dias massacres em Gaza, na Cisjordânia, em Jerusalém. Essa é a história diária das agressões israelenses contra nosso povo.
É possível lembrar de muitos massacres durante a história dessa ocupação. Foram milhares em 2021, em 2014, milhares e milhares.
E ontem (dia 17), nós vimos como eles atacaram o Hospital Baptista Al-Ahli. Este é um hospital associado à Igreja Batista. Mataram 500 civis inocentes que procuravam refúgio dentro do hospital, incluindo mulheres, crianças e velhos.
O mundo pode ver claramente. Todos os dias, em 24 horas, acontecem pelo menos quatro ou cinco massacres contra nossas famílias, sem nem dar a elas nenhum sinal de alerta.
Portanto, não é nossa intenção, não são nossos planos, de fazer mal ou atacar os civis.
P - Como é que o senhor e o governo de Gaza, não apenas o Hamas, qualificam o governo de Israel? Forças democráticas e de esquerda cada vez mais consideram o regime israelense como um regime de apartheid e genocida. O governo de Gaza e o Hamas concordam com isso?
R - Não é sobre o Hamas concordar ou não concordar. Até o B'Tselem, que é uma organização israelense [Centro de informações israelense para os direitos humanos nos territórios ocupados] descreveram Israel como um regime apartheid, como um governo racista.
E isso é provado por todas as leis e regras e ação no campo. Eles estão dividindo palestinos, eles estão matando palestinos, eles estão roubando nossas terras, nossas casas, nossas vilas... De novo, isso não é o nosso julgamento, isso é o julgamento da comunidade internacional, especialmente do B'Tselem e outros grupos de direitos humanos.
Se olharmos para o atual governo de Israel, eu posso enviar muitos vídeos onde os próprios israelenses, até alguns membros do próprio governo, que descreveram ministros como Bezalel e Ben-Gvir como terroristas [Bezalel Smotrich é o ministro das Finanças de Israel; Itamar Ben-Gvir é o ministro da Segurança Nacional].
Há apenas alguns anos, eles estavam sentados nos tribunais israelenses como terroristas. Eles ainda estão na lista de terroristas dentro de Israel e nos EUA. Esses ministros, no último mês, antes da ação de 7 de outubro, convocaram israelenses para destruir cidades palestinas, para matar palestinos. Smotrich disse recentemente que os palestinos têm três escolhas: deixar o país ou serem mortos ou viver como escravos aqui, sob o controle israelense.
Ben-Gvir disse que todos os prisioneiros palestinos devem ser executados. Eu acho que não precisamos ter muitas provas mais para mostrar o quão racista e fascista é esse governo.
E qual é a situação agora?
Não há comida, não há comunicação. A cada dia, você está ouvindo as notícias, ou assistindo as notícias de massacres. Mais de 60 famílias palestinas foram totalmente erradicadas do registro civil. Não sobrou ninguém.
Eles estão atacando prédios de três, cinco, seis andares com 60, 70 pessoas, sem nenhuma prova. Desde o início da agressão israelense contra a Faixa e Gaza, mais de 300 palestinos morrem todos os dias.
Todos eles são civis, são mulheres, crianças e velhos. A água está cortada, a eletricidade está cortada, não há combustível, e eles não estão permitindo a ninguém ajudar ou abrir as fronteiras para trazer alguma ajuda humanitária.
Eles disseram para as pessoas descerem do norte para o sul da Faixa de Gaza, que seria mais seguro. Mas, no caminho para o sul, eles atacaram os comboios e apenas em um dos casos mataram 70 palestinos [leia aqui reportagem da Fórum sobre o ataque com o vídeo].
E agora? Ontem (dia 17), eles entraram em contato com o Hospital Baptista, um dos mais antigos na Faixa de Gaza, um hospital cristão, disseram que as pessoas tinham que sair. O que poderíamos fazer? Nós não podíamos sair do hospital, e deixar centenas de pacientes nas UTI, crianças, mulheres, pessoas machucadas. Deixar todas e sair do hospital?
Nós não podíamos fazer isso. A administração do hospital recebeu uma resposta dos mediadores dizendo que tudo bem, que os hospital não seria atacado. E, de repente, depois de algumas horas, eles atacaram um míssil americano, que causou a morte de mais cerca de 500 palestinos e o número pode dobrar, porque muitos estão seriamente machucados e é impossível salvar as vidas deles. Muitas das infraestruturas e acomodações do hospital foram destruídas. E tem mais: eles também ordenaram que mais cinco hospitais fossem evacuados.
Nós estamos esperando novos massacres em outros hospitais. Eles atacaram prédios da ONU, escolas da ONU e instalações da ONU. Eles estão se comportando de uma forma tão louca, sem limites, porque eles tiveram uma luz verde, a luz verde mais verde do Oeste, em particular dos Estados Unidos, para destruir a Faixa Gaza, matar o máximo possível ou empurrar o resto das pessoas para deixar a região. Esse é o plano. Nós estamos esperando o pior. É muito, muito sério, e nós não podemos aceitar esse apoio contínuo do regime apartheid.
P - O que vocês esperam como reação popular ao ataque? Algumas horas depois de noticiado o ataque ao hospital, milhares de pessoas tomaram as ruas no Oriente Médio, Europa e América do Norte. O Hezbollah convocou uma rebelião e um “dia de raiva”...
R - Isso é a luta palestina pela liberdade. O povo palestino está lutando e lutando pela sua liberdade e dignidade, pela sua própria independência. Mas, ao mesmo tempo, nós estamos convidando, pedindo o apoio de qualquer pessoa, de qualquer país, porque as pessoas têm que ficar do lado correto da história, no caminho da justiça. Ninguém pode aceitar essa agressão contínua por mais de 75 anos contra nosso povo.
Nós esperamos apoio dos países árabes, dos países islâmicos, dos países ao redor do mundo, de todas as pessoas livres ao redor do mundo, para parar esse genocídio, para parar essa agressão e para ajudar nosso povo a alcançar seus objetivos e direitos.
P - E como é que o senhor vê o papel do Brasil que está neste momento na presidência do Conselho de Segurança da ONU?
R - O Brasil é um grande país, um país influente, o Brasil é amigo da Palestina, um amigo do povo palestino, e agora o Brasil é o chefe do Conselho de Segurança, é membro dos Brics, nós pensamos que o Brasil pode fazer muito para parar essa loucura, para parar essa agressão, e para ter um papel central em iniciar um processo político.
Eu tenho que dizer que, infelizmente, nós estamos chocados e surpresos pela posição brasileira. Estávamos esperando mais, uma posição totalmente diferente. Nós estávamos esperando alguém falar sobre soluções políticas.
Nós estávamos esperando, porque não é um conflito entre Hamas e Israel. Não é um conflito entre Gaza e Israel. É um conflito entre palestinos que estão sob ocupação estrangeira e os ocupantes israelitas. E nós estamos procurando nossos direitos políticos como pessoas, para vivermos em dignidade em nosso Estado independente, para vivermos livremente, para termos nossa soberania, para garantir um futuro melhor para nossos filhos.
Portanto, nós esperamos que pelo menos alguns países tenham um pensamento racional ou pensamento de equilíbrio para exigir uma imediata paralisação desta agressão, desta ronda de confrontação e iniciar um processo de equilíbrio e de justiça política.
P - Doutor Naim, há chance efetiva de os brasileiros retidos em Gaza, aprisionados em Gaza, retornarem ao Brasil? Por que a fronteira do Egito não foi aberta ainda?
R - Isso é muito simples, porque os israelitas fecharam as fronteiras e disseram aos egípcios que não é permitido abrir as fronteiras de novo. Os egípcios tentaram repetidamente enviar ajuda humanitária e as fronteiras foram bombardeadas por forças aéreas israelitas três ou quatro vezes. Isso é muito sério, ninguém pode tentar ir lá, porque é muito, muito sério. A segunda coisa é que todas as pessoas, incluindo palestinos com nacionalidades estrangeiras, não podem ir do norte para o sul, e posso dizer que centenas de pessoas estão esperando agora por sete dias perto da passagem de Rafah [na fronteira com o Egito]. Pessoas de nacionalidades diferentes, não só brasileiros, mas elas não podem sair, porque a qualquer momento, se a fronteira aberta, será atacada pelas forças aéreas israelitas. O próprio chefe do departamento de Rafah foi morto com sua família [Horas depois da entrevista, o presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou que o Egito iria abrir as fronteiras para envio de alguns suprimentos, mas não foi mencionado o tema da saída de estrangeiros].
P - O governo de Gaza e o Hamas têm relações com o governo brasileiro e com o PT?
R - Nós temos algumas relações com figuras no governo, no Congresso, mas na maioria dos casos são relações não oficiais, porque você sabe que sob a pressão do Ocidente de pessoas muito poderosas, por causa das sanções ao Hamas e a Gaza, tenta-se evitar esses contatos públicos.
Mas eu tenho que dizer que é uma perda de tempo evitar o contato das pessoas do Hamas e de Gaza. A maioria das pessoas sustenta a visão do Hamas de que temos que lutar pela nossa liberdade e pela nossa dignidade.
Nós fomos infelizmente enganados pela comunidade internacional. Estamos esperando há 75 anos para a comunidade internacional implementar resoluções da ONU. E nada foi feito.
P - Dr. Naim, existem ainda algumas questões que o senhor queira colocar?
R - Eu espero que todos nossos irmãos e irmãs, amigos e amigas no Brasil possam dar passos para que Israel pare essa agressão, para ajudar nosso povo a conquistar seu direito de uma vida digna e independente e livre, um futuro mais seguro.
Nós acreditamos que os brasileiros podem fazer muito. Eu acho que é uma causa de todos e todos com uma mente consciente devem ficar do lado correto da história.
Muito obrigado.