A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos Golpistas entregou, nesta terça-feira (17) o relatório final sobre as investigações referentes aos atentados antidemocráticos nas sedes dos Três Poderes, deflagrados por bolsonaristas em 8 de janeiro. O documento, que foi sendo elaborado desde a instalação da comissão em 25 de maio, aponta uma série de crimes supostamente cometidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e também pelo o que o colegiado chama de uma "organização criminosa" supostamente liderada pelo ex-chefe do Executivo.
Os 32 indiciamentos mencionados no relatório incluem nomes próximos à família Bolsonaro, a exemplo de generais do Exército, e de casos associados ao 8 de janeiro: os financiadores da tentativa de golpe; o atentado à bomba em 24 de dezembro de 2022; o caso das joias; e o caso dos cartões de vacinação.
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O documento indica a investigação de ao menos 13 delitos supostamente cometidos nos atos golpistas. Entre as páginas 784 e 807 do relatório, a CPMI elenca "tão somente os tipos penais mais relevantes para as apurações do objeto principal da CPMI, sem prejuízo do reconhecimento da prática de outros tipos penais por indivíduos específicos".
Dano qualificado
O crime de dano na sua modalidade simples está previsto no artigo 163 do Código Penal (CP), que determina a ocorrência quando o agente destrói, inutiliza ou deteriora coisa alheia.
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A condição qualificada do dano caracteriza-se pelo crime cometido conforme os incisos do parágrafo único:
I - com violência à pessoa ou grave ameaça;
II - com emprego de substância inflamável ou explosiva;
III - contra o patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de Município ou de autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviços públicos;
IV - por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima.
O atentado terrorista do 8 de janeiro, com aproximadamente 4 mil participantes, abrange a totalidade dos incisos do artigo 163 do CP e é passível de detenção de seis meses a três anos e multa. Também é possível a adição de pena correspondente à violência da conduta.
Explosão
Conforme o artigo 251 do CP, o crime de explosão se configura por "expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, mediante explosão, arremesso ou simples colocação de engenho de dinamite ou de substância de efeitos análogos".
Inserido no título "Dos Crimes contra a Incolumidade Pública" do Código Penal, o crime de explosão é categorizado como crime de perigo concreto por colocar em risco a vida das pessoas e as coisas.
A pena é de reclusão de três a seis anos, além de multa. Caso a substância utilizada no crime não seja dinamite ou explosivo de efeito análogo, a penalidade é reduzida para reclusão de um a quatro anos. Há um aumento de um terço da pena de acordo com o estabelecido no artigo 250, anterior à este:
§ 1º - As penas aumentam-se de um terço:
I - se o crime é cometido com intuito de obter vantagem pecuniária em proveito próprio ou alheio;
II - se o incêndio é:
a) em casa habitada ou destinada a habitação;
b) em edifício público ou destinado a uso público ou a obra de assistência social ou de cultura;
c) em embarcação, aeronave, comboio ou veículo de transporte coletivo;
d) em estação ferroviária ou aeródromo;
e) em estaleiro, fábrica ou oficina;
f) em depósito de explosivo, combustível ou inflamável;
g) em poço petrolífico ou galeria de mineração;
h) em lavoura, pastagem, mata ou floresta.
O crime refere-se à colocação de artefato explosivo em caminhão-tanque carregado de querosene de aviação no Aeroporto Internacional de Brasília, em 24 de dezembro de 2022. O indiciado é o empresário George Washington de Oliveira Souza, frequentador do acampamento golpista de Brasília. Em depoimento à Polícia Federal (PF), revelou que a detonação da bomba teria o objetivo de "dar início ao caos que levaria à decretação do estado de sítio".
Incitação ao crime
O primeiro crime previsto no título "Dos Crimes contra a Paz Pública" é a incitação pública da prática de crime, com pena de detenção de três a seis meses e multa. A incitação deve ser: a crime, e não a qualquer infração penal; e direcionada a um número indeterminado de pessoas.
Inserido em setembro de 2021 como parte "Dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito", o parágrafo único do artigo 286 do CP complementa: "Incorre na mesma pena quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade".
"Com efeito, conforme será tratado posteriormente, diversos agentes, inclusive públicos, incidiram nas penas do parágrafo único, pois frequentemente se utilizavam de redes sociais, notadamente o Twitter (atualmente, X.com), para incitar publicamente animosidade entre as Forças Armadas e os poderes constitucionais, clamando também por 'intervenções constitucionais' de acordo com uma interpretação absurda do art. 142 da CF", diz o relatório.
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Associação criminosa
A prática de organização criminosa é descrita no artigo 288 do Código Penal como a associação de "3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes". O delito não exige a prática material de crimes, mas a associação com a finalidade de cometê-los.
O delito de associação criminosa é crime de perigo, que se consuma com a mera associação de três ou mais pessoas para o fim de cometimento de crimes. É prescindível o início de qualquer ato executório dos crimes visados, pois o bem jurídico tutelado não é aquele relativo aos crimes visados, mas sim a paz pública.
Constituição de milícia privada
A constituição de milícia privada é um crime previsto no artigo 288-A do CP, criado a partir a Lei nº 12.270/12, e assemelha-se ao delito de associação criminosa. Sua descrição é: "Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código".
Como aponta o relatório, além do objetivo de associação para a prática de delitos, a constituição de milícias exige que esses crimes estejam previstos no CP. A pena é de reclusão de quatro a oito anos.
Corrupção passiva
De acordo com o artigo 317 do Código Penal, o crime de corrupção passiva pode ser compreendido como solicitar ou receber vantagem indevida – ou aceitar promessa de tal vantagem – para si ou para outra pessoa, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão do cargo exercido.
A pena é de detenção de 2 a 12 anos, e multa. Contudo, a punição pode aumentar em um terço ou ser amplamente reduzida conforme definições dos incisos:
§ 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.
§ 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
O inciso 2 apresenta corrupção passiva privilegiada, na qual o funcionário "pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, infringindo dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem". Por isso, o documento aponta a necessidade de discernimento entre a conduta dolosa do agente – ele quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo – e a satisfação de sentimento pessoal, isto é, o crime de prevaricação.
Prevaricação
O crime de prevaricação está previsto no artigo 319 do Código Penal. Neste caso, o indivíduo retarda ou deixa de praticar, indevidamente, seu ato de ofício, ou o pratica contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
A pena é a detenção de três meses a um ano, somada de multa. A pena é mais grave no Código Penal Militar (CPM): seis meses a dois anos de reclusão.
Abolição violenta do Estado Democrático de Direito
Previsto no artigo 359-L do CP desde 2021, o crime segue a seguinte descrição: "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais". A pena é de reclusão de quatro a oito anos, além de pena correspondente à violência.
Golpe de Estado
Segundo crime na seção contra as instituições democráticas, o delito é apresentado pelo artigo 359-M, que o define como a tentativa de depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído. A pena é de 4 a 12 anos de reclusão, além de penalização correspondente à violência.
O crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L), conforme visto, tutela os "poderes constitucionais", ou seja, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, na forma do art. 2º da CF. De outro lado, o art. 359-M tutela "o governo legitimamente constituído", que, segundo a doutrina, se restringe ao Poder Executivo (de qualquer das esferas de governo, frise-se).
"Como os atos criminosos no dia 8 de janeiro foram direcionados aos edifícios-sede dos Três Poderes, entendemos que não há como aplicar o princípio da consunção entre os arts. 359-L e 359-M, de modo que os indivíduos devem responder por ambos os delitos, em concurso material, pois tutelam bens jurídicos distintos", justifica o documento.
Crime contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural
De acordo com o artigo 62 da Lei nº 9.605/98 – Lei dos Crimes Ambientais (LCA) – a destruição, inutilização ou deterioração do meio ambiente ou meio ambiente artificial é configurada como crime.
Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar:
I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial;
II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
"Relembre-se que o Conjunto Urbanístico de Brasília-DF é protegido, considerando-se tombado em toda a sua extensão o Plano Piloto de Brasília, o que inclui a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios, conforme o Decreto nº 10.829, de 14 de outubro de 1987", esclarece o relatório sobre o paisagismo da capital federal.
Impedimento ou embaraço do exercício do sufrágio
A CPMI também investigou crimes ocorridos durante o processo eleitoral. Entre eles, destacou-se o impedimento ou criação de adversidades para o exercício de voto do cidadão brasileiro nas eleições de 2022. O crime, previsto no artigo 297 do Código Eleitoral, prevê punição de detenção até seis meses e pagamento de 60 a 100 dias-multa.
Violência política
Incluído em 2021 no Código Penal, o artigo 359-P abrange a violência política: "Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional".
A pena é de três a seis anos de reclusão, multa e pena correspondente à violência.
Divulgação de fatos inverídicos em relação a partidos ou candidatos, na propaganda ou período de campanha eleitoral
Mais um crime previsto no Código Eleitoral é descrito no artigo 323 como a divulgação de fatos inverídicos em relação a partidos ou a candidatos na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, capazes de exercer influência perante o eleitorado.
O elemento subjetivo do tipo é o dolo, na modalidade direta, não prevendo possibilidade de responsabilização por dolo eventual. Nesse sentido, o agente deve saber que o fato é inverídico, cabendo ao órgão ministerial demonstrar esse fato no oferecimento da denúncia. Os fatos inverídicos devem ser atribuídos ou a candidatos, apresentando, por isso, sujeito passivo próprio.
Quem comete o crime recebe detenção de dois meses a um ano, ou pagamento de 120 a 150 dias-multa. A pena aumenta em um terço até metade se o crime: (i) é cometido por meio da imprensa, rádio ou televisão, ou por meio da internet ou de rede social, ou é transmitido em tempo real; ou (ii) envolve menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia.
Lista de indiciados
O documento da CPMI enumera 53 nomes no capítulo de indiciamentos, que conta com generais do Exército que compuseram o governo anterior, ministros do ex-presidente, congressistas e funcionários ligados à família Bolsonaro. Confira alguns dos nomes mencionados:
- Jair Messias Bolsonaro: ex-presidente;
- Walter Souza Braga Netto: general do Exército, ex-ministro da Defesa e candidato à vice-presidência na chapa de Bolsonaro
- Augusto Heleno: general do Exército, ex-ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência;
- Luiz Eduardo Ramos: general do Exército e ex-ministro-chefe da Secretária-Geral da Presidência;
- Paulo Sérgio Nogueira: general do Exército e ex-ministro da Defesa;
- Mauro Cid: general do Exército, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro;
- Anderson Torres: ex-ministro da Justiça e Segurança Pública e ex-Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal (DF);
- Silvinei Vasques: ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF);
- Tércio Arnaud Tomaz: ex-assessor especial do ex-presidente Bolsonaro e membro do "Gabinete do Ódio";
- Carla Zambelli: deputada federal (PL-SP);
- Ibaneis Rocha: governador do Distrito Federal;
- Renato Lima França: assessor jurídico da Presidência da República e procurador federal;