PATRIMÔNIO SUSPEITO

Porque comprar 51 imóveis em dinheiro vivo indica prática de lavagem de dinheiro? Advogada criminalista explica

Em entrevista à Fórum, a criminalista Débora Nachmanowicz explica, de forma didática, quais são os caminhos que resultam na prática da ocultação da origem ilícita de valores

Porque comprar 51 imóveis em dinheiro vivo indica prática de lavagem de dinheiro? Advogada criminalista explica.Créditos: Arquivo pessoas/Flickr
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Foi revelado nesta semana o escândalo de que o Clã Bolsonaro, desde que ingressou no mundo político nos anos 1990, adquiriram 107 imóveis, dos quais 51 foram pagos em dinheiro vivo.

O modo de pagamento dos imóveis registrado em cartório foi "em moeda corrente nacional", expressão padronizada para repasses feitos em espécie (dinheiro vivo), no valor de R$ 13,5 milhões. Em valores corrigidos, hoje o montante seria de R$ 25,6 milhões. 

Do total dos imóveis, pelo menos 25 foram comprados em situações que suscitaram investigações do Ministério Público e do Distrito Federal. Neste caso, há aquisições e vendas feitas pelos filhos do presidente Bolsonaro e suas ex-esposas. 

Com a revelação da história, voltou à tona a discussão sobre a prática de compra de imóveis para se lavar dinheiro. Cabe lembrar que o filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), é investigado pela prática das chamadas "rachadinhas" quando era deputado estadual no Rio de Janeiro. Os funcionários do gabinete do então deputado tinham de sacar e devolver 90% dos salários e, acredita-se, que parte desse dinheiro eram "lavados" com a compra de imóveis. 

Mas, o que é a prática da lavagem de dinheiro? E por que ele é uma das preferidas para se ocultar a origem ilícita de valores? Para explicar como funciona esse sistema de operação, a Fórum conversou com a advogada Débora Nachmanowicz que, de maneira didática, destrincha os caminhos da lavagem de dinheiro.


Fórum: Como funciona a lavagem de dinheiro 

Débora Nachmanowicz: O que é a lavagem de dinheiro? É um crime especificado em lei com diversas condutas que se caracteriza pela tentativa de dar a aparência de legalidade a um produto ou valor de outro crime. A tentativa da pessoa em transformar um valor ou um produto ilícito em um bem lícito. 
Então, você dá essa aparência de legalidade. Para isso você precisa de um crime previamente à lavagem de dinheiro, ou seja, você precisa de uma atividade criminosa anterior à lavagem de dinheiro. Isso pode ser tráfico de drogas, por exemplo, mas já que estamos falando do âmbito público pode envolver todos aqueles que são entendidos como crimes do colarinho branco: sonegação fiscal, corrupção, crimes de licitação e por aí vai. 

Uma vez que as pessoas tenham esses valores ilícitos em mãos, a lavagem de dinheiro vai servir a inserir na economia nacional esses recursos e, geralmente, isso se dá através de disfarces de diversas estratégias. Pode ser a multiplicidade de operações, o espalhamento de operações financeiras e isso, de alguma forma, dificulta o rastreamento dos valores. 

Uma outra forma é, para o dinheiro ser considerado limpo é a transformação deste valor em um outro bem lícito, sem que tenha sido possível rastrear a sua origem ou até se ele tiver sido gasto de uma outra forma. Portanto, por qualquer uma dessas estratégias você consegue realizar a ocultação ou a dissimulação do bem ou do valor de origem ilícita. Assim se dá a lavagem de dinheiro. 


Fórum: Comprar imóveis com dinheiro vivo é crime?

Débora Nachmanowicz: A compra de imóveis com dinheiro vivo ou de qualquer bem ou item de alto valor financeiro que se dê em espécie, em dinheiro vivo pode ser um indício de que a pessoa recebeu os valores de alguma forma não foram declarados à Receita Federal e dessa forma ele transforma o valor em um bem lícito. 

O uso de dinheiro vivo pode acontecer por diversas razões, não necessariamente indica um crime, pode até ter uma questão cultural, geracional, era comum os nossos avós terem e andarem mais com dinheiro. Mas, geralmente, o que se verifica e que ocorre com certa frequência, o uso de dinheiro vivo entre agentes que são envolvidos com atos de corrupção e isso se dá, geralmente, por recebimento de valores em troca de alguma vantagem, isso pode se dar através de propinas ou as famosas “rachadinhas”, que também estão em investigação intensa, e nesse caso o ideal é que o valor não seja diretamente transferido para a conta daquele que exige devolução do salário, como no caso da “rachadinha”. Uma das estratégias vai ser o saque em espécie, ou seja, em dinheiro vivo para ser entregue em mãos daquele que exigiu a devolução do salário e dessa forma você impede ou dificulta muito a rastreabilidade desse valor. Dificulta, inclusive, a investigação. 

Além da corrupção, o dinheiro vivo também pode ter origem em sonegações fiscais diversas: a pessoa recebe por um serviço ou por um bem que é lícito, está de acordo com a lei, mas ela não declara esse valor afim de se esquivar do pagamento de impostos, e aí você tem também um crime. 

O fato de que esses valores geralmente são pagos em dinheiro vivo se dá porque dessa forma o valor não passa pelo sistema bancário e isso reduz a capacidade de fiscalização dos fisco, isso porque as operações financeira acima de R$ 10 mil reais precisam ser comunicadas ao Banco Central que, através de seus órgãos como o Coaf (Centro de Controle de Atividades Financeiras ) que podem realizar o cruzamento de dados de seus diversos sistemas para verificar alguma atividade que não condiz com a capacidade financeira daquela pessoa que realizou a operação. E aí, a depender do resultado são produzidos relatórios e assim o Coaf e o Banco Central, todos os órgãos do governo colaboram com a prevenção à lavagem de dinheiro. 

Desde 2020 o Coaf deve receber informações sobre operações de compra de imóveis que sejam feitas em dinheiro vivo, operações que sejam feitas em espécie. OS disponíveis, eles são públicos, eles mostram que em 2021 foram 759 imóveis que envolveram operações de pagamentos em espécie, parcial ou totalmente 


Fórum: Como você avalia o fato de a família Bolsonaro ter comprado 51 imóveis com dinheiro vivo? 

Débora Nachmanowicz: 51 imóveis que tenham sido transacionados ao longo de alguns anos, na verdade décadas e o último tenha sido em 2018, é inegável que é uma quantidade anormal de imóveis comprados com valores em espécie. A compra de 51 de imóveis - de 107 no total - em dinheiro vivo, especialmente em razão do altíssimo valor envolvido, ainda que a gente nem considere a atualização monetária, então não sejam os R$ 25 milhões, sejam os R$ 15 milhões, é um valor bastante alto e é um grande indício de cometimento de lavagem de dinheiro, ou seja, de integrar ao mercado nacional através de um bem lícito um valor de origem criminosa. 

Inclusive é um grande indício (de lavagem de dinheiro), tanto que no caso da investigação das “rachadinhas” o que se descobriu é que parte do valor era, de fato, inserido no mercado através da compra de imóveis.  Mas, para que se confirme essa suspeita é importante uma adequada e aprofundada investigação que pode cruzar dados de diversos sistemas oficiais e financeiros, fiscais, imobiliários, de joias, previdenciário, enfim, todos os sistemas que permitem esse cruzamento que fazem uma verificação da origem da movimentação dos valores pagos. 

Se fosse qualquer pessoa do povo a comprar 51 imóveis em espécie ao longo de anos, ou qualquer outro político que a polícia tenha maior trânsito para permitir a investigação, o mais provável é que já houvesse, ao menos, as diversas quebras de sigilo fiscal, financeiro, telefônico etc. O que me parece de fato estranho é que a identificação desses imóveis em dinheiro vivo tenha ocorrido através do jornalismo e não através da polícia.