Nos últimos dias, em meio a crise entre o governo e instituições, o presidente Jair Bolsonaro e ministros militares, como Walter Braga Netto (Defesa) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), voltaram a falar sobre a possibilidade de uma intervenção militar, ou sobre o suposto "papel moderador" das Forças Armadas para a resolução de conflitos entre os Poderes.
No último sábado (14), durante cerimônia de formação de oficiais na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), por exemplo, Bolsonaro citou o tal "papel moderador" do Exército, Marinha e Aeronáutica.
"O momento é de satisfação e alegria para todo o Brasil. Nas mãos das Forças Armadas, o poder moderador. Nas mãos das Forças Armadas, a certeza da garantia da nossa liberdade, da nossa democracia, e o apoio total das decisões do presidente para o bem da sua nação", disparou o presidente.
Braga Netto, também presente na cerimônia, endossou dizendo que cabe às Forças Armadas “assegurar a defesa da pátria, a defesa da soberania, da independência e harmonia entre os poderes e da manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro, que é nosso verdadeiro soberano".
Já o general Heleno, em entrevista à rádio Jovem Pan nesta segunda-feira (16), declarou que "uma intervenção [militar] pode acontece pela necessidade de manter a tranquilidade do país. E pode acontecer em qualquer lugar (…) Mas se ele [o artigo 142] existe no texto constitucional, é sinal de que pode ser usado".
O artigo 142 da Constituição
Bolsonaro e os ministros, para falar sobre intervenção militar, se apoiam em uma interpretação do artigo 142 da Constituição Federal, que trata sobre o papel das Forças Armadas.
O principal ponto do artigo que os bolsonaristas usam para justificar a legalidade de uma intervenção é o seguinte:
"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
Câmara e STF: Não, artigo não pode ser usado para intervenção
Tanto a Câmara dos Deputados quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) já fizeram essa discussão sobre a interpretação do artigo 142 da Constituição e concluíram: o texto constitucional não dá base legal para uma intervenção militar e nem para que as Forças Armadas atuem como "poder moderador".
Em junho de 2020, a Secretaria-Geral da Mesa Diretora da Câmara, com base em estudos técnicos da Constituição, produziu um parecer sobre o assunto.
“Não há qualquer fragmento normativo no texto constitucional ou em qualquer outra parte do ordenamento jurídico brasileiro a autorizar a mediação ou mesmo a solução dos conflitos entre os Poderes da União pelas Forças Armadas. Mais: certamente as Forças Armadas não pretendem exercer tais supostas atribuições e tampouco estão aparelhadas a fazê-lo, diz um trecho do parecer, que foi assinado pelo então secretário-geral da Mesa, Leonardo Barbosa.
Segundo o documento, trata-se de "fraude ao texto constitucional" a interpretação de que as Forças Armadas teriam o poder de se sobrepor a “decisões de representantes eleitos pelo povo ou de quaisquer autoridades constitucionais a pretexto de 'restaurar a ordem'".
"Não existe país democrático do mundo em que o Direito tenha deixado às Forças Armadas a função de mediar conflitos entre os Poderes constitucionais ou de dar a última palavra sobre o significado do texto constitucional", prossegue o parecer.
E arremata: “Jamais caberá ao presidente da República, nos marcos da Constituição vigente, convocar as Forças Armadas para que indiquem ao Supremo Tribunal Federal qual é a interpretação correta do texto constitucional diante de uma eventual controvérsia entre ambos”.
Confira a íntegra do parecer abaixo
STF
No mesmo mês que a Câmara emitiu o parecer, o Supremo Tribunal Federal (STF) também se manifestou sobre o assunto.
Em resposta a uma ação apresentada pelo PDT contra “eventual intervenção militar”, o ministro Luiz Fux deu uma decisão liminar (provisória) para estabelecer que a prerrogativa do presidente da República de autorizar emprego das Forças Armadas não pode ser exercida contra os outros dois Poderes.
“A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República”, ressaltou o magistrado.