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POLÍTICA
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Por Evilázio Gonzaga*
A patética demonstração de puxa-saquismo, disfarçada de ataque histérico, do general Heleno foi uma das cenas mais constrangedoras da história do Brasil. O general é um exemplo da degeneração dos militares brasileiros. A cena sinistra prova que oficiais de hoje são medíocres, mesmo quando comparados aos responsáveis pelo golpe de 1964.
Os militares da ditadura eram autoritários, violentos e simpáticos ao fascismo, porém na sua maioria os oficiais daquela geração mantinham forte sentimento patriótico e desenvolvimentista. A geração atual de militares mantém inabalável o comportamento autoritário e avesso à democracia, porém o nacionalismo e o desenvolvimentismo entre eles são coisas raríssimas.
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Os nacionalistas, que estão em rápida extinção, são perseguidos e abatidos, como o general Juarez Aparecido de Paula Cunha, que presidia os Correios. Paula Cunha foi demitido por ter se oposto ao modelo entreguista de privatização selvagem da organização que comandava, o que vai abrir o bilionário mercado de entregas do Brasil para os competidores internacionais.
Entretanto, a principal vítima da degeneração que corrói as Forças Armadas na atualidade foi o general Carlos Alberto dos Santos Cruz. Um dos mais cultos e preparados oficiais brasileiros, Santos Cruz fala várias línguas e foi o único oficial brasileiro a exercer um comando de tropas de paz da ONU, no qual as tropas brasileiras não tinham relevância, quando coordenou, durante dois anos, mais de 23 mil militares de 20 países, na República Democrática do Congo. Após exercer o comando na África, o general brasileiro contribuiu para a organização e o treinamento de tropas, que iriam servis em diversas missões de paz coordenadas pela ONU.
Sem sombra de dúvida, o general Santos Cruz é o militar brasileiro mais reconhecido e respeitado internacionalmente.
Disciplinado, o general não fez maiores comentários sobre a sua demissão, mas segundo a velha mídia brasileira, “fontes do Palácio do Planalto informaram que o oficial foi exonerado por divergências com o núcleo duro do governo”. Ou seja, Santos Cruz foi demitido por diferenças ideológicas, em um governo que, na propaganda, afirmava “combater o viés ideológico.
Subordinação e entreguismo: o núcleo ideológico do governo
O centro da visão ideológica do governo atual é a subordinação a uma potência estrangeira e um entreguismo irresponsável do patrimônio nacional. Tudo o mais é periférico ou propaganda.
A subordinação é explícita, no alinhamento automático do Brasil aos Estados Unidos, nas guerras que aquele país move contra praticamente o mundo inteiro. O governo brasileiro só deixou de sacrificar seus jovens em uma sangrenta aventura militar, inconsequente e criminosa, contra a Venezuela, porque as Forças Armadas brasileiras estão defasadas belicamente.
O entreguismo é mais evidente nas privatizações anárquicas, selvagens e subfaturadas, que estão ocorrendo; porém há também artimanhas nesse sentido, que são menos perceptíveis para a maioria dos cidadãos comuns, como é o caso da reforma da Previdência. Sem que a população perceba, o governo entreguista se prepara para transferir trilhões para os cofres dos grandes bancos internacionais, através da adoção da capitalização, como modelo principal da aposentadoria no país. Isso também é privatizar dinheiro da população e entregar para bancos estrangeiros.
Dessa forma, o governo suga imensos recursos do mercado consumidor interno e transfere para o sistema financeiro comandado pelas instituições de Wall Street e da City de Londres. Será uma privatização entreguista colossal, que escapa ao observador comum.
Todo o resto – caça aos extintos comunistas, demonização da política, homofobia, machismo, exaltação da violência, preconceito, fundamentalismo religioso, chauvinismo, apologia à ignorância, rejeição ao saber, negação da cultura, racismo, descaso com o meio ambiente e outros retrocessos civilizatórios – é irrelevante e secundário. Serve apenas para distrair a atenção para os objetivos centrais do núcleo instalado no poder.
A distração é uma tática militar: os comandantes mandam tropas secundárias atacar um ponto, para atrair o inimigo, quando na verdade o alvo verdadeiro é outro e, pelo movimento de distração, ficará menos protegido.
É um indício de dedos militares no comando das grandes movimentações do governo bolsonarista. Isso significa que Bolsonaro, seu núcleo duro e o grupo de militares que têm poder de fato (comandados pela dupla Villas Bôas e Heleno) estão extremamente próximos ideologicamente no propósito de subordinação à uma potência estrangeira e de entreguismo do patrimônio brasileiro.
O processo de liquidação em curso inclui os ativos militares, como a Embraer, os segredos da tecnologia de refino nuclear e a Orbisat, que eram tão valorizados pelos antigos oficiais nacionalistas.
Os militares nacionalistas que restam são raros
Uma alta autoridade do período do governo Lula, no Ministério da Defesa, disse que ainda existem militares com bom nível de preparo intelectual, defensores da soberania, adeptos do desenvolvimento e confiantes na possibilidade de o Brasil ser uma potência de classe mundial, a exemplo da China, Índia, Japão ou Coreia. Mas “eles são minoria”, segundo esse funcionário público de alto escalão, hoje afastado.
“Além de serem poucos”, continua o observador privilegiado, que acompanhou o surgimento do Ministério da Defesa, “os militares nacionalistas e desenvolvimentistas estão desarticulados e o governo dispersa esses oficiais, oferecendo a eles postos bem remunerados, porém afastados do poder, em diretorias e conselhos das estatais, como Petrobras, Furnas, Eletrobras e outras”. Dessa forma, avalia, “eles não conseguem se organizar, para influir nos rumos do governo. Com isso, a maioria acaba se concentrando na própria sobrevivência”.
O caso dos Correios confirma essa informação. Quando um desses militares questionou as diretrizes subalternas e entreguistas do governo bolsonarista, foi imediatamente demitido.
Para entender como a maioria dos militares brasileiros deixou de lado posições nacionalistas e desenvolvimentistas, que caracterizaram as Forças Armadas no passado, para adotar um comportamento antipatriótico e entreguista, é preciso percorrer rapidamente a trajetória histórica das Forças Armadas brasileiras.
Exército brasileiro nasce das forças militares de Portugal
Diferentemente do que pensa o senso comum, as Forças Armadas brasileiras não surgiram na revolta contra a ocupação holandesa do Nordeste. A adoção da Batalha de Guararapes como marco inicial do Exército brasileiro foi uma invenção da propaganda getulista, que pretendia criar símbolos nacionalistas, para estimular o patriotismo em torno do governo e de suas instituições. Foi nessa época também – e pelos mesmos motivos – que o culto a Tiradentes foi fortalecido.
O Exército brasileiro, na verdade, surgiu como uma continuação das forças portuguesas, que acompanharam a monarquia de Portugal, quando a corte de Dom João VI fugiu de Napoleão Bonaparte.
O exército português, por sua vez, tem sua origem na revolta estimulada pelos britânicos, para separar Portugal da coroa espanhola. Como se sabe, os reinos de Portugal e Espanha foram unidos desde 1580, quando morreu Dom Sebastião, da prestigiosa dinastia de Avis; até 1640, época em que os ingleses, em guerra contra a Espanha, levaram ao trono um nobre da obscura família Bragança, Dom João II. A partir de então e até a Revolução dos Cravos, Portugal permaneceu como uma semicolônia britânica. O país passou a contar com a proteção das forças do Reino Unido e o exército português se organizou com uma força auxiliar do Império Britânico.
O Brasil, então, passou a ser uma colônia de uma colônia.
A própria fuga da família real para o Brasil ocorreu a bordo de navios da marinha do Reino Unido.
Na América do Sul, as forças portuguesas que vieram com o rei se dedicaram a cumprir missões determinadas pelos interesses do governo inglês, como a invasão da Guiana Francesa, em 1809, e os ataques ao Uruguai, em 1811. Ambas as operações seguiam diretrizes da coroa britânica, que pretendia impedir a França de obter bases de apoio para a sua marinha.
Quando os membros da monarquia lusitana fizeram o acordo familiar, que garantiu a independência do Brasil, o Reino Unido atuou como fiador e o Império do Brasil se instalou sob a proteção britânica. O Brasil, portanto, foi constituído como uma espécie de protetorado britânico, situação que durou até o enfraquecimento do Reino Unido, na Primeira Guerra Mundial. As guerras travadas pelo Brasil no período, inclusive o difícil conflito contra o Paraguai, atendiam aos interesses econômicos do Império Britânico. Outras operações militares do Brasil, na época, visaram reprimir movimentos políticos e populares internos.
As operações de repressão, especialmente contra os adeptos do beato Antônio Conselheiro, no povoado nordestino de Canudos, já na etapa republicana, entre 1896 e 1897, denunciaram a fragilidade do Exército brasileiro.
A defasagem técnica e doutrinária; evidenciada nas fracassadas operações de repressão interna; impediu a participação de forças terrestres brasileiras na Primeira Guerra Mundial, apesar da declaração de guerra contra as potencias centrais – Alemanha e Áustria-Hungria.
Logo que terminou o conflito, com características técnicas, táticas e um morticínio nunca visto antes na história, o governo brasileiro decidiu modernizar as Forças Armadas. Enquanto a Marinha continuou sob forte influência inglesa, o Exército contratou uma missão do país que fora o principal responsável pela vitória aliada nos campos de batalha: a França.
Franceses modernizam o Exército e estimulam o nacionalismo
A primeira missão francesa chegou um ano após o fim da guerra, em 1919, e ficou 20 anos no Brasil, somente encerrando suas atividades em 1940, quando a França foi derrotada e ocupada na Segunda Guerra Mundial.
Animados pelo importante papel da França na Primeira Guerra Mundial (os exércitos do país foram os principais responsáveis pela vitória aliada), os franceses procuraram aumentar o seu peso mundial. Uma das estratégias foi estimular o nacionalismo republicano nos novos estados nacionais, principalmente nas Américas Central e do Sul, para competir com a influência britânica e dos EUA. Dessa forma, as missões militares francesas resultaram em milionárias encomendas de armamento fabricado na França.
No Brasil não foi diferente, porém aqui o principal legado dos militares gauleses foi a formação de gerações de oficiais simpatizantes do republicanismo nacionalista e do desenvolvimento, para modernizar o país.
A qualidade da formação técnica oferecida pelos franceses era de nível excelente. Uma conversa com o falecido general Albuquerque, formado pela Missão Francesa, ilustra a qualidade técnica transmitida pelos instrutores gauleses. O general serviu como capitão de artilharia na Força Expedicionária Brasileira, que lutou na Europa. A artilharia brasileira adotava a doutrina francesa, segundo o então capitão, muito mais eficiente do que suas analogas estadunidense e britânica. Conforme lembra o general, “os americanos e ingleses desperdiçavam muita munição; pois ficavam disparando salvas de artilharia, durante horas ou dias e não acertavam o alvo”. “Nós dávamos três tiros, antes de começar a barragem de artilharia”, explica ele, “se o primeiro fosse muito atrás, corrigíamos a pontaria, caso o segundo atingisse adiante do alvo, bastava regular o ângulo da balística e o terceiro disparo com certeza ia na mosca; então começava a barragem e todos os obuses acertavam o alvo, sem desperdício de munição”.
Os alunos da missão francesa tiveram importante papel em todos os principais acontecimentos do país, desde o tenentismo, um movimento modernizador; passando pela revolução desenvolvimentista de 1930; as marchas nacionalistas que criaram a Petrobras, na década de 1950, até o golpe militar de rendição aos Estados Unidos de 1964.
Mesmo durante a ditadura militar, que foi produto do golpe de 1964, o núcleo de comando das Forças Armadas brasileiras, apesar do autoritarismo brutalmente repressivo, manteve um comportamento nacionalista e desenvolvimentista.
Doutrina dos EUA substitui a francesa e elimina o nacionalismo
O fim da missão francesa e a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial foi um demarcador de mudanças nas Forças Armadas do Brasil. A partir do maior conflito da história, os oficiais brasileiros passaram a ser formados pelos militares norte-americanos. Todas as concepções republicanas, nacionalistas e desenvolvimentistas trazidas pelos franceses foram abandonadas, sendo substituídas por um doutrinamento determinado pela Guerra Fria.
Na nova doutrina introduzida na jovem oficialidade brasileira, pelos seus mestres estadunidenses, não havia espaço para nacionalismos, o país deveria se alinhar a uma potência hegemônica, que liderava uma luta mundial contra um centro de poder hostil. O desenvolvimentismo também foi deixado de lado, pois na nova ordem os países deveriam cumprir determinadas funções e o papel do Brasil seria o de fornecedor de comida e matérias primas. Projetos como industrialização, autonomia tecnológica e parque bélico independente – coisas tão caras aos militares das gerações anteriores, inclusive os que governaram na ditadura – passaram ser ideias obsoletas.
A concepção de posicionar o Brasil como um país dependente, com uma economia meramente complementar, em um arranjo mundial hegemonizado pelos Estados Unidos, foi inclusive teorizado por intelectuais, como Fernando Henrique Cardoso, com a sua formulação particular da Teoria da Dependência, bastante distinta de seus criadores originais, como Theotônio dos Santos.
Os militares brasileiros que ascenderam ao poder com Bolsonaro, um mau militar, como o definiu o General Geisel, são imbuídos da concepção de que o mundo vive uma nova Guerra Fria. Com uma visão confusa da geopolítica, os oficiais das Forças Armadas do Brasil parecem acreditar que há uma guerra de civilizações, que coloca de um lado os Estados Unidos e, de outro, países como a China, Rússia, Irã, Cuba e Venezuela. A formação que receberam nas escolas militares, sob forte influência das doutrinas estadunidenses, leva os soldados brasileiros a acreditarem que o país deve escolher um lado nesse conflito mundial.
Definido o lado, obviamente o dos seus mentores, não há espaço para a preocupação com a manutenção de uma indústria bélica independente, pois pelo que aprenderam nas escolas militares que estudaram, as Forças Armadas brasileiras serão supridas com armamento das indústrias de seu aliado líder – obviamente, equipamentos obsoletos, como os Estados Unidos sempre fazem até mesmo com seus principais “aliados”.
A repressão ao “inimigo interno” é parte da nova doutrina
Para essa geração de militares, combater a centro esquerda e os movimentos populares está na essência dessa guerra. Na visão míope desses oficiais, somente os neoliberais e conservadores podem ser considerados “aliados”; todos os demais são inimigos, inclusive os democratas liberais e conservadores civilizados.
Os militares brasileiros são doutrinados, por seus mestres dos EUA, a ver o Brasil como um país minúsculo, que jamais terá um lugar entre as maiores nações do planeta. A doutrina da guerra de civilizações também exige que eles considerem grande parte da população como composta por inimigos a serem derrotados e controlados.
Com uma instituição importante como as Forças Armadas mantendo essa visão equivocada e deformada do mundo, o Brasil terá muitas dificuldades para consolidar sua democracia.
Dessa forma, no difícil trabalho de recuperação da democracia no Brasil, uma das principais preocupações a serem pautadas deverá ser a reorganização das Forças Armadas, que exige um novo paradigma de formação dos oficiais em novas bases independentes de qualquer influência externa, mais civilizadas, sofisticadas do ponto de vista geopolítico, democráticas e comprometidas com o Brasil.
*Evilázio Gonzaga é jornalista, publicitário, especialista em marketing e comunicação digital