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Por André Constantino Yazbek*
Algumas declarações do atual ministro da Educação, Abraham Weintraub, com intervalos de poucos dias e devidamente acompanhadas de afirmações de mesmo quilate proferidas pelo senhor excelentíssimo presidente da República, Jair Bolsonaro, dão o tom exato da espécie de narrativa paranoica que é constitutiva das concepções autoritárias de governo: nós, os professores de filosofia e sociologia, dentre tantos outros espantalhos convenientes às concepções obscurantistas deste governo, devemos ser neutralizados, e isso a bem do próprio erário público.
Assim, no dia 26 de abril, em uma “live” em rede social, terra de ninguém, o senhor Weintraub afirmou ser necessário “descentraliza” investimentos em faculdades de filosofia e sociologia, sem especificar exatamente o que isso significaria, mas sinalizando claramente a disposição de minguar o já parco suporte público aos cursos universitários e de humanidades em geral.
No dia 30 de abril, por sua vez, uma nova investida, desta feita realizada em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo: afirmando a realização de um corte discricionário que pareceria beirar a ilegalidade – por seu caráter de retaliação e pelo tom difamatório que o acompanha –, o senhor Weintraub anunciou que o Ministério da Educação cortaria verbas de universidades que estivessem promovendo “balbúrdia” em seus campi, referindo-se especificamente à Universidade Federal de Brasília (Unb), à Universidade Federal Fluminense (UFF) e à Universidade Federal da Bahia (UFBA), instituições que gozam de prestígio nacional e internacional e que, inclusive, figuram entre as instituições de melhor desempenho do país, segundo números do próprio Ministério da Educação (MEC).
Um dia depois, novo vai-e-vem errático, e somos informados, por um comunicado oficial, que o MEC cortará 30% das verbas de todas as universidades federais; e seguiram-se provocações ao Twitter contra os “reitores (ditos) esquerdistas”.
Do ponto de vista meramente prático, ou institucional, o senhor ministro da Educação revela, para o cargo que ocupa, uma inaceitável ignorância acerca da natureza mesma dos saberes produzidos na área de humanidades, do custo e do perfil atual dos estudantes em nossas universidades: com custos bastantes modestos em relação a outras áreas do saber, as humanidades detém, em seus cursos, discentes em sua maioria egressos das camadas de mais baixa renda da população. Como se não bastasse, algumas das declarações do senhor Weintraub ainda flertam com a possibilidade de violações ao artigo 207 da Constituição Federal, que garante a autonomia universitária, e ao artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa, uma vez que ameaçam os princípios da administração pública ao aparentarem ter por motivação uma retaliação contra as instituições supracitadas e seus reitores.
Mas é preciso mostrar que há mais, uma vez que existe método mesmo (e sobretudo) na violência e na barbárie autoritárias, mormente quanto institucionalizadas: o anti-intelectualismo manifesto do núcleo duro deste governo não é um epifenômeno, mas antes a encarnação de seu mais consistente retrato; representa talvez o único projeto realmente central, e “pessoal”, de um governo cuja adesão às pautas econômicas liberais, esta sim!, é medida pela conveniência e oportunismo característicos dos pequenos personagens da política. E é este núcleo duro, ideológica e explicitamente afeito a práticas autoritárias de governo, que necessita da narrativa paranoica do inimigo interno, – no caso presente, “nós, os inimigos”, somos os professores de humanidades.
E é possível lembrar-se aqui de Theodor Adorno, para o qual a paranoia e a semiformação consagram a “educação por cotoveladas”. Costuma-se dizer que um paranoico é paranoico e continua a sê-lo até que sua paranoia lhe dê razão. Pois bem, é preciso convir que este governo acabará por ter razão: seus gestos de força e de iniquidade são os gestos de um tiranete que, como todos, revela absoluta inapetência para compreender e manter o que define o ambiente universitário e a própria política democrática ao menos desde a modernidade, – a liberdade de pensamento e de crítica; e sua razão paranoica encontrará na universidade brasileira uma profecia autorrealizável, na medida em que nossas instituições foram forjadas pelos exemplos de resistência e defesa das liberdades democráticas durante as décadas mais sombrias da ditadura civil-militar brasileira, e continuarão resistindo contra as investidas do autoritarismo.
Os senhores de hoje, como os de outrora, temem o pensamento crítico; e o temem porque a crítica, como dizia Michel Foucault, é a arte da inservidão voluntária, da indocilidade refletida: trata-se de um imperativo ético e político de recusa a ser “governado deste modo e a este preço”. Este governo tem razão: “nós, os inimigos”, desde há muito fazemos do pensamento a matéria prática e a tarefa política de opor ao obscurantismo, manifesto ou velado, formas de vida social refratárias aos modos pelos quais ele procura nos vincular às violências do domínio autoritário (em uma prática de pensamento que o velho Immanuel Kant não hesitou em chamar de “Esclarecimento”). Por este motivo, o pensamento crítico, para eles, é insuportável, – assim como lhe são insuportáveis o espírito republicano e as práticas democráticas de governo.
*André Constantino Yazbek é doutor em Filosofia (PUC-SP), professor adjunto de Filosofia e chefe do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Este artigo foi publicado originalmente no site da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF)