Ajuda humanitária para quem?

"A tal ajuda humanitária à Venezuela é tão mentirosa quanto as boas intenções de Trump com o muro na fronteira com o México ou o curriculum vitae de alguns bolsominions."

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Por Glauber Piva* Pelé dedicou o milésimo gol às crianças do Brasil. Milhares e milhares de enfadonhos candidatos a todos os cargos possíveis disseram que as crianças seriam suas prioridades. Infernais celebridades já choraram e fizeram selfies emotivas por cães sofridos e, às vezes, por crianças famintas. Zilhões e zilhões de páginas já foram impressas dizendo que o maior problema do Brasil é a educação, mas foram raras as vezes em que o conceito de ajuda humanitária foi aplicado à infância brasileira. Dia 17 de fevereiro, na FSP, Antonio Prata escreveu A educação pela treva. Ele abre o texto com uma pergunta incontornável: “como se educa um filho num país desses?”. O artigo é lindo e emocionante. Empatia pura derivada de quem é pai e assiste incrédulo ao obscurantismo brasileiro. Ao final, Prata nos diz que “aqui, neste reino distante, tudo conflui para você chegar a ser um reizinho mandão, um senhor das moscas com um chifre pendurado na parede”. O curioso de tudo o que estamos vivendo não é a falta de sentido a olhares desconfiados (é óbvio que há sentido nisso: o controle do petróleo venezuelano por Trump e seus aliados) numa ação belicosa e imperialista (sim, é isso mesmo!) disfarçada de “ajuda humanitária”. O interessante é a dramaturgia novelesca repartida em capítulos em que os venezuelanos são transformados em monstros de vários tipos. Vivemos a fase da guerra alimentada nas redes sociais, com muitos adjetivos e mentiras saborosas (fake news, se você preferir). A tal ajuda humanitária à Venezuela é tão mentirosa quanto as boas intenções de Trump com o muro na fronteira com o México ou o curriculum vitae de alguns bolsominions. Mas, aqui, não é esse o ponto. A questão é que a América Latina vive uma etapa histórica delicada na qual a comunicação digital produz subjetividades por meio de aparatos muito sofisticados, que envolvem inteligência artificial, processamento de grandes volumes de informação, nanosegmentação e a sincronização de sua narrativa política com os meios de comunicação tradicional. É assim que vamos criando ondas de invisibilidades e emoções. O que a subserviência militar do Brasil aos Estados Unidos e as manchetes sobre a Venezuela estão escondendo? Enquanto olhamos para a fronteira de Roraima, não vemos os indígenas que os genocidas querem eliminar, ignoramos o descalabro das merendas escolares e o emparedamento e silenciamento das infâncias brasileiras. No Brasil de hoje, os adultos lutam para manter os narizes acima da linha d’água enquanto as crianças tocam a vida para sobreviver. É assim que negamos aquele proverbio africano que diz que, para educar uma criança, é preciso toda uma aldeia. Negamos porque, tristemente, o Brasil perdeu conexão consigo mesmo, com seu presente. Nossas crianças, por exemplo, muitas vezes frequentam escolas que pouco as escutam e, portanto, pouco as respeitam, comem comidas que pouco as alimentam e aprendem a fugir da violência geral, seja da polícia, de líderes religiosos, da escola, da rua. E fazem tudo isso morando em cidades que não as acolhe e que as aparta dos espaços de natureza. Fazem isso buscando refúgio no dinamismo das redes sociais, nos territórios digitais e nas territorialidades que eles constroem. E o fazem em busca de conexão, em busca da empatia perdida, do sentido que a liquidez da vida urbana moderna parece nos furtar. Como diz Antonio Prata naquele artigo, “a dissonância entre a realidade brasileira e o que meu filho aprende em casa e na escola é da ordem da psicose. Dois mais dois são quatro, nós insistimos em dizer, mas sabemos que se você tiver os contatos certos, dois mais dois são cinco ou quinhentos”. O Brasil precisa de ajuda humanitária. As crianças brasileiras estão num beco escuro pedindo comida e visibilidade. Infelizmente o país não as vê, nem as escuta.