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POLÍTICA
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[caption id="attachment_165575" align="alignnone" width="700"] Foto: Reprodução[/caption]
Por Kerison Lopes*
Eu era presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e do meu lado aparece o então deputado federal Lindbergh Farias e outros militantes políticos e dos movimentos sociais que enfrentavam os meganhas. Dentro do prédio, ocorria uma tentativa de privatização da então chamada Companhia Vale do Rio Doce (CVRD).
Eram tempos de implementação do programa neoliberal privatizante comandado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. E a Vale era a cereja do bolo, a maior empresa brasileira já privatizada. Mais do que uma empresa, pois a crítica principal que fazíamos na época era que, com ela, estavam privatizando nosso subsolo. Quando foi vendida, a Vale tinha 351.723 km² de áreas de pesquisa e lavra de minérios. Uma área maior que o conjunto dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo.
Fundada por Getúlio Vargas, quando privatizada, formava um conjunto de 27 empresas, realizando prospecção do subsolo, transporte ferroviário extração e processamento de minérios e sofisticadas atividades de química fina. Assim como a Petrobras é uma empresa de ponta na prospecção de petróleo em águas profundas, a Vale na época era destaque no mundo em tecnologia e na pesquisa e exploração do subsolo. E o mais importante: nos 55 anos em que foi estatal (1942-1997) nunca cometeu um crime ambiental como o que praticou agora em Brumadinho e há pouco em Mariana.
Privatizada, a Vale virou uma mera furadeira de buracos e exportadora de produto primário, como minério bruto. Jogou fora um acúmulo de pesquisas minerais que começaram muito antes de Getúlio Vargas. Ainda nos tempos de colônia, a Coroa Portuguesa sempre se preocupou em agregar valor à extração mineral. Brasileiros eram enviados para “missões científicas” em outros países, para aprenderem e desenvolverem nossa mineração. É famosa a viagem que José Bonifácio e Manuel Ferreira, conhecido como Intendente Câmara, fizeram na segunda metade do século XVIII por vários países da Europa para pesquisarem o que mais avançado havia em tecnologia de extração mineral.
Só na Alemanha, ficaram dois anos estudando na famosa Escola de Mineração e Metalurgia Bergakademie Freiberg, que era o maior centro especializado em mineração do mundo. Na época, haviam se formado na Universidade de Coimbra e após quase uma década de viagens e pesquisas, Intendente Câmara voltou para o Brasil para implantar o programa brasileiro de mineração. Foi ele que, ao vir pra Minas Gerais, percebeu o potencial da região do Vale do Rio Doce para a extração mineral. Pode-se dizer que foi um visionário da companhia criada séculos depois.
A Vale, fundada no período desenvolvimentista de Getúlio Vargas, é herdeira deste acúmulo tecnológico. Antes do presidente gaúcho, houve a importante decisão de Arthur Bernardes, que presidiu o país de 1922 a 26, de lutar pela nacionalização da exploração mineral. No período do seu governo, a empresa que foi base para a criação da Vale, a Itabira Iron Ore, pertencia ao norte-americano Percival Farquhar. O sonho de Bernardes só se concretizou em 1942 e foi graças ao período belicoso da Segunda Guerra Mundial. Os países aliados, principalmente Inglaterra e Estados Unidos, precisavam assegurar a aquisição de minério de ferro para alimentar suas indústrias bélicas e viam no Brasil o exportador ideal. Forneceram os recursos necessários para a estatização da Itabira Iron Ore. Graças a isso, a Vale do Rio Doce foi fundada em 1º de junho de 1942.
Findada a guerra, Getúlio Vargas tratou de ampliar as atividades da empresa. Tanto geograficamente, além de Minas Gerais, quanto ao seu ramo de atividades. Os presidentes seguintes mantiveram a expansão da empresa, que na década de 80 ganhou grande impulso com a entrada em operação da mina de ferro de Carajás, no Pará.
Os séculos de investimento em pesquisa e exploração fizeram da Vale o maior conglomerado mineral do mundo. Quando assumiu a presidência, Fernando Henrique discursou dizendo que fora eleito para acabar com a Era Vargas. E sua principal ação neste sentido foi acabar com a Vale do Rio Doce. Além de um crime de lesa-pátria, foi o maior escândalo de corrupção da nossa história. Foi vendida por US$ 3,3 bilhões, quando somente as suas reservas minerais eram calculadas em mais de US$ 100 bilhões à época. Foi adquirida por um consórcio liderado pelo Banco Opportunity, que tinha à frente o banqueiro Ricardo Sérgio, muito vezes denunciado por corrupção durante os governos FHC. Para consumar o negócio, ele criou o Sweet River Fund (Fundo Rio Doce) que atraiu cotistas no exterior.
A empresa passou então a ser controlada pelo capital financeiro e internacional, com o único objetivo de extrair lucro bruto. Para isso, concentrou sua atividade em exportação de minério, sem nenhum beneficiamento dos produtos, intensificando o esgotamento das reservais minerais, ao lado de impactos no meio ambiente. Se resumiu na atividade extrativista, sem nenhum efeito multiplicador em termos de emprego e de dinamismo econômico. Da mais avançada em tecnologia de ponta no mundo, a empresa se resume hoje numa companhia especializada em cavar buraco.
Esta vocação extrativista começou a ser implementada logo após sua privatização. Começou com a alteração do nome. Antes Companhia Vale do Rio Doce, passou a se chamar apenas Vale. Primeiro, tirou o Rio Doce do nome. Depois, tirou o próprio Rio Doce do mapa, pois o crime ambiental praticado pela sua subsidiária Samarco em Mariana destruiu aquele que era um dos principais rios do país.
Visando o lucro bruto e imediato, a Vale, depois de privatizada, ganhou uma nova vocação: de empresa assassina. E quem mais sofre são os mineiros, que já carregam no nome a atividade mais desenvolvida aqui desde a chegada dos portugueses. Pelo número de vítimas, os crimes ambientais mais famosos são os praticados em Mariana e agora em Brumadinho. Mas é importante registrar que a cada dois anos, uma barragem de mineradora rompe-se em Minas Gerais.
Antes uma grande impulsionadora da economia mineira, hoje a Vale apenas explora a extração mineral, destruindo nossas montanhas e matando nosso povo. Brumadinho foi o ápice desta política predatória. Com certeza o crime vai fazer mais de 300 vítimas, grande maioria trabalhadores da empresa. Ilude-se quem pensa que a tragédia vai mudar seu comportamento. 19 vidas foram tiradas em Mariana, além do maior dano ambiental da história. Passados três anos do ocorrido, as famílias não foram indenizadas, nenhuma casa foi reconstruída. Um fundo de bilhões foi criado para a recuperação da natureza nos entornos de onde passou a lama, mas a empresa teve o desplante de criar uma entidade ambiental, a Renova, para gastar o dinheiro arrecadado para o fundo. E ela que dá as cartas.
Logo após ocorrido o crime de Mariana, ganhou força um movimento que defendia a reestatização da Vale. Mas o Brasil mudou muito nos últimos anos. Parte dos governantes eleitos pelas urnas do ano passado defendem um modelo de privatização selvagem. Em Minas, ganhou um governador, Romeu Zema (Novo), que teve a privatização como principal bandeira. Bolsonaro também apresentou um programa privatizante e criou um ministério com esse único objetivo, que se chama Secretaria de Desestatização e Desinvestimentos do Governo Federal. Isso mesmo “Desinvestimentos”, quem diria que após séculos desenvolvendo uma nação com investimentos, criaríamos um ministério com o objetivo de desinvestir.
Bolsonaro nomeou para o posto o empresário mineiro Salim Mattar, dono da locadora de carros Localiza. Nesta terça-feira (29), em evento do banco Credit Suisse, Mattar afirmou que vai privatizar ou extinguir todas as estatais brasileiras na sua totalidade e apenas Banco do Brasil, Caixa e Petrobras terão pequenos segmentos preservados. Atualmente, a União tem 138 estatais sob sua gestão. Questionado se privatizações não poderiam causar tragédias como no caso da Vale, Mattar fez uma defesa enfática da empresa, dizendo que “a companhia não fez mal a ninguém”.
Em uma plenária da Frente Brasil Popular, realizada na última segunda-feira em Belo Horizonte, foi aprovada uma bandeira de reestatização da Vale. Essa luta pode ter um sentido pedagógico, mas soa utópica em tempos atuais. Talvez mais importante é resgatar o movimento contra as privatizações, usando o exemplo de Brumadinho para mostrar os males que a venda de patrimônio público pode causar.
Voltando à foto da capa da Folha de SP, que citei no início do artigo, a manifestação que realizamos em frente a Bolsa de Valores em 1997, contra a privatização da Vale, foi o resultado do acúmulo de um amplo movimento que envolveu milhares de entidades em todo o país. Num período em que a mobilização popular era nossa prioridade. Que o crime praticado pela Vale em Brumadinho pelo menos sirva pra despertar o povo brasileiro para os riscos das privatizações desenfreadas e da entrega no nosso patrimônio, principalmente o caso da Petrobras, a maior empresa pública nacional. E que a comoção que gerou se transforme em luta e defesa do Brasil e do nosso povo, que está pagando com a própria vida pela ganância do capital e o entreguismo de seus governantes.
*Kerison Lopes é presidente da Casa do Jornalista e ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais
Texto publicado orginalmente no Portal Vermelho
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