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[caption id="attachment_136831" align="alignnone" width="1024"] Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula[/caption]
Por Stella Bruna Santo* e Gabriel Borges**
Intensificam-se as análises, inclusive de magistrados, a respeito do registro da candidatura do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, que parecem convergir num pré-julgamento inusitado no sentido de considerar, de antemão, que ele está inelegível.
Já que não concebemos a Justiça Eleitoral como mero departamento protocolar de verificação dos documentos apresentados pelos candidatos, nossa intenção é incluir, nesse debate de tamanha envergadura, alguns elementos fundamentais de caráter preliminar e com viés constitucional, visando contribuir para as discussões que em breve enfrentarão nossas cortes superiores e serão pauta de interesse nacional.
Como primeiro ponto, alertamos que a Constituição Federal estabelece a filiação partidária como condição de elegibilidade e, por consequência, veda as candidaturas avulsas. O Partido dos Trabalhadores é titular do direito constitucional à participação no pleito presidencial, por ser um partido político que está legalmente constituído e em pleno funcionamento. O PT pode, portanto, pleitear o registro da candidatura do ex-presidente Lula.
Eis a primeira inversão a que assistimos hoje, já com reflexos no processo eleitoral. É o PT o agente legitimado a escolher sua chapa presidencial e solicitar o registro perante o TSE. Se é certo que o PT pode concorrer, também é regra basilar do Direito Eleitoral, em respeito ao princípio da igualdade de condições na disputa, que o partido tenha os mesmos direitos dos demais concorrentes, para que efetivamente possa participar dos atos de pré-campanha das eleições presidenciais. Aos demais partidos foi assegurada a participação nos debates em rádio, TV e internet, mas, em desrespeito aos princípios constitucionais supramencionados, tais direitos estão sendo negados ao PT em nome de seu pré-candidato.
Outros fatos relacionados à condenação e prisão do ex-presidente Lula, com destaque aos eventos das últimas semanas, revelam uma conjuntura de ofensas reiteradas a princípios constitucionais. Não à toa, a cada dia aumentam as manifestações de juristas de renome, dentro e fora do país, de entidades e personalidades políticas internacionais que o consideram um prisioneiro político, todos a denunciar, com provas, as tantas ilegalidades decorrentes de um processo penal que muitos definem como farsa judicial.
Ganha relevância, nesse contexto, a decisão do Comitê Internacional de Direitos Humanos da ONU que resolveu analisar a denúncia apresentada pela defesa do ex-presidente Lula, com provas robustas de abusos de poder na condução do processo pelo magistrado de primeiro grau (com reflexos no sistema judicial como um todo), apontando para a ausência das garantias de independência no julgamento do processo penal a que Lula está sendo submetido.
Todas essas questões refletem diretamente no julgamento do pedido de registro de candidatura a ser apresentado pelo PT, e merecem ser consideradas. Ainda que se faça vistas grossas às violações das garantias no processo penal, cabe à Justiça Eleitoral o papel constitucional de evitar que as tantas ilegalidades já perpetradas estendam-se agora à esfera eleitoral, de forma a garantir que o preceito fundamental e mais importante da democracia — o da soberania popular — seja preservado sem vícios ou fraudes, afastando as tantas artimanhas que surgem a cada dia para tolher os direitos políticos de um ex-presidente, que pretende novamente disputar o cargo eletivo de mais alta importância da República Federativa do Brasil.
Para que tenhamos a concepção plena dos reflexos de todo esse aparato de violações perante a Justiça Eleitoral, condensamos em dois tópicos, de forma resumida, alguns aspectos práticos que dizem respeito ao processo de registro da chapa presidencial do PT às próximas eleições:
1)Quanto aos direitos políticos do ex-presidente Lula
No momento da discussão a respeito da plenitude dos direitos políticos do ex-presidente Lula, deve ser considerado o teor da decisão do Comitê Internacional de Direitos Humanos da ONU, que mencionou o artigo 25, “b”, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que estabelece “o direito a qualquer cidadão de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores”.
Tal decisão já foi comunicada ao Estado brasileiro, que por ser signatário está obrigado a assegurar tais garantias a Lula. Trata-se, pois, de matéria passível de análise pelo TSE, eis que se refere ao exercício dos direitos políticos, requisitos e condições de elegibilidade, questão, pois, de conteúdo constitucional.
Além disso, um dos princípios constitucionais mais importantes do ordenamento jurídico brasileiro é a preservação da plenitude dos direitos políticos que não podem, em hipótese alguma, ser suspensos enquanto não houver o trânsito em julgado de sentença condenatória, algo que ainda está longe de se concretizar no caso de seu processo penal. Trata-se, igualmente, de matéria constitucional que somente poderá ser apreciada no pedido de registro da candidatura, eis que o partido certamente apresentará, no momento oportuno, as provas do preenchimento dessa condição de elegibilidade.
Sendo assim, não pode haver indeferimento sumário, de plano, como já anteciparam alguns magistrados em notícias publicadas na imprensa nacional. Qualquer tentativa de apreciação dessa matéria antes do julgamento do pedido de registro (ou sob o aspecto da condenação em segunda instância, quitação eleitoral ou pela Lei das Inelegibilidades) caracteriza grave ofensa à Constituição Federal e deverá ser objeto dos recursos próprios perante a suprema corte, não apenas pela violação patente dos princípios da ampla defesa e do contraditório, como também por conflitar com a manifestação do Comitê Internacional de Direitos Humanos da ONU.
2)Quanto à Lei da Ficha Limpa
Não há dúvida de que as eleições configuram a principal expressão de nossa democracia. Nesse contexto é que deve ser compreendida a Lei da Ficha Limpa, que não foi aprovada pelo Congresso Nacional para ser utilizada como inimiga da soberania popular ou como arma contra os eleitores.
A Justiça Eleitoral, ao julgar impugnações ao registro de candidaturas, deve se nortear pelo princípio de que o melhor julgamento é sempre o do povo nas urnas, para que não retire do páreo candidatos que consigam demonstrar o efetivo preenchimento das condições de elegibilidade. E essa avaliação não se dá apenas pela análise linear dos documentos apresentados pelos candidatos, até porque a Justiça Eleitoral não é um balcão cartorário, mas pelo exame conjunto de todos os elementos apresentados, eis que questões tangentes podem ter surgido justamente com o intuito de interferir indevidamente no processo eleitoral.
Por outro lado, não se pretende aqui fazer qualquer abordagem quanto à constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, mas, sim, discutir os elementos teleológicos no que tange ao alcance do disposto no artigo 1º, I, alínea “e” da Lei Complementar 64/90, sempre à luz dos preceitos constitucionais.
Sem titubeios, a literalidade desse dispositivo não pode ter aplicação automática, sob pena de serem anulados outros princípios da Constituição Federal com maior peso na interpretação das normas eleitorais. Se a intenção da Lei da Ficha Limpa foi banir da disputa eleitoral os que cometeram crimes de teor relevante para impedir que se tornem representantes do povo, por outro lado a própria Lei das Inelegibilidades prevê a competência específica da Justiça Eleitoral para analisar o enquadramento do candidato nas hipóteses previstas na lei, que não pode ocorrer de forma automática.
Para servir como parâmetro, tomemos como exemplo o que já faz a Justiça Eleitoral quando analisa, caso a caso, a matéria de impugnação do registro de candidatura com fundamento na alínea “l”, atinente à condenação por improbidade administrativa, ao definir, apenas no momento do julgamento do registro, se existe ou não ato doloso, dano ao erário e enriquecimento ilícito, independentemente de decisão já proferida em outras esferas da Justiça comum.
Da mesma maneira, no tocante à alínea “e” do mesmo artigo, não se pode aplicar a Lei da Ficha Limpa de forma aritmética nem considerar que se trata de mera transposição de decisão judicial de outra esfera que nem mereça ser analisada pela Justiça Eleitoral.
Também nesse quesito, a singularidade de cada caso precisa ser analisada à luz da violação ou não de preceitos constitucionais, com a apreciação, pela própria Justiça Eleitoral, da possibilidade de não se sustentar nas cortes superiores a condenação criminal do candidato, autorizando-o, em consequência, a disputar o pleito eleitoral.
Além de a Justiça comum apreciar a plausibilidade dos recursos a teor do disposto no artigo 26-C da Lei das Eleições, deve a própria Justiça Eleitoral analisar o registro sob esse enfoque, sobretudo em casos de flagrantes violações a dispositivos constitucionais, inclusive para verificar se a condenação criminal teve, por via direta ou indireta, o objetivo de atingir ou interferir no processo eleitoral. E tal análise somente pode ser efetuada pela Justiça especializada como instância originária e competente.
Em outras palavras, é fundamental que a plausibilidade a que se refere a Lei das Eleições também seja analisada pela Justiça Eleitoral sob outro ângulo, qual seja, sob a ótica de se preservar tanto a soberania popular como também a plenitude dos direitos políticos do candidato, que não podem sofrer nenhuma interferência indevida, advinda de condenação oriunda de processo judicial eivado de vícios ou ilegalidades.
No caso do ex-presidente Lula, a revisão da condenação criminal pela terceira e quarta instâncias é certa, e as violações a garantias constitucionais revelam, mesmo numa análise superficial, uma repercussão proposital no seu registro de candidatura, razão pela qual não se pode permitir que a condenação em segunda instância possa inabilitá-lo automaticamente, causando prejuízo irreversível ao exercício de seus direitos políticos.
As ilegalidades já consumadas na esfera penal saltam aos olhos. E se o processo penal teve seus prazos encurtados visando impedir que o ex-presidente Lula concorra às eleições gerais do próximo dia 7 de outubro, a Justiça Eleitoral vai se abster de analisar tal questão, que compromete inclusive o princípio da soberania popular? Não pode, pois, ficar inerte, tampouco ignorar a gravidade do que vem ocorrendo até o momento em seu processo criminal cujos meandros, aliás, são de conhecimento público e foram dissecados e propagados por todos os cantos do país.
Ao enfrentar tal debate, precisa considerar que, para preservar a garantia constitucional dos direitos políticos, uma pena injusta e inconstitucional não pode produzir todos os seus efeitos, tanto pela possibilidade de ser a condenação reformada nas instâncias superiores quanto pela não aplicação aritmética da alínea “e”. Uma condenação injusta e inconstitucional não pode gerar inelegibilidade automática, pois aplicada será igualmente injusta e inconstitucional.
O ex-presidente Lula e seu partido possuem elementos de prova que precisam ser analisados pela Justiça Eleitoral no momento adequado, que é no processo de registro de sua candidatura, que não poderá ser julgado como se fosse apresentado perante um despachante que chancela a aceitação ou não de sua documentação.
Entendemos que a aplicação automática do disposto no artigo 1º, I, alínea “e” da Lei Complementar 64/90 fere, de igual forma, a Constituição Federal. No caso do registro de Lula, representaria uma aberração jurídica e um atentado a seus direitos políticos e ao princípio da soberania popular, bem como ao direito dos brasileiros de eleger seus representantes em eleições livres e autênticas.
Que a Justiça Eleitoral se mostre à altura do desafio atual. Que não se cometam ainda mais injustiças àquele que já está sendo injustiçado pela própria Justiça.
*Stella Bruna Santo é advogada especializada em Direito Eleitoral, sócia do Santo, Borges, Sena Sociedade de Advogados
**Gabriel Borges é advogado especializado em Direito Eleitoral, sócio do Santo, Borges, Sena Sociedade de Advogados
Originalmente publicado no Conjur