"Não mais o grande ritual aterrorizante dos suplícios, mas no correr dos dias e pelas ruas esse teatro sério, com suas cenas múltiplas e persuasivas."
Michel Foucault
Foucault se refere às novas técnicas de condenação inauguradas pela nova economia do corpo. A publicidade da punição se altera. Vigiar o preso, exibir o corpo do condenado, tornou-se mais lucrativo para o poder, no século XIX, que a carnificina do suplício. E com isso, as tecnologias de dominação e controle se modernizaram.
A construção dos atores
Somos uma sociedade extremamente personificada. Aliás, essa é uma herança do mundo pré-moderno que insiste em afrontar as transformações trazidas pela modernidade.
Desde a Grécia Antiga, temos a necessidade de personificar virtudes, princípios morais, grandezas espirituais etc.. Assim nasceram os deuses gregos. E quem sabe tenha sido por causa da helenização da cultura judaica que houve a necessidade de existir um Deus personificado, como é o caso de Jesus Cristo?
Esse é um ranço que não conseguimos extirpar. Hoje a Justiça é simbolizada em Moro, seja a má ou a boa, dependerá aqui do seu ponto de vista. A corrupção, por um lado, é figurada em Lula, por outro, o petista é a personificação do ideal de esquerda e da Justiça social no país.
Hitler é a personificação do nazismo, Stalin do totalitarismo. Todas essas formas, tipos ideais, são maneiras de manipulação usadas por determinados grupos que querem se eximir da participação de uma forma de poder que as circunstâncias resolveram odiar. Em Hitler condensa-se tudo o que é o nazismo, na mesma época em que, por sinal, nos EUA se defendia a supremacia branca. Stalin representa o totalitarismo, coincidentemente, na mesma época em que nos EUA caçavam-se comunistas e anarquistas, em que Churchill patrocinava campos de concentração na India e Roosevelt na América Latina para japoneses e descendentes.
A melhor forma de manipular um discurso é personificá-lo, criar uma “cara”, pois, assim, será muito mais fácil torná-lo repulsivo ou atrativo. O carisma gera identificação, um elemento fundamental para inserir em uma ideia o poder de persuasão.
E a personificação irá se somar, nos tempos modernos, a personalização. Richard Sennet destaca que a partir dos finais do século XVIII, “como os deuses estavam desmistificados, o homem mistificava a sua própria condição”. O sociólogo também ressalta o impacto da personalização na vida pública: “dessa personalização da sociedade provêm dois resultados: de um lado, uma instabilidade naquilo que é percebido, de outro, uma passividade naquele que percebe”.1
A mídia não só personifica um discurso, mas o personaliza, o torna próprio de alguém, indissociável do indivíduo que serve aos seus caprichos, fabricando heróis e vilões, para atingir fins obscuros.
O poder foi por muito tempo personificado. Até mesmo hoje, em que se fala tanto em democracia, em que há, supostamente, três poderes. Personifica-se o judiciário, o executivo e o legislativo. Exime-se, assim, o sistema, a lógica de funcionamento, os interesses e os ideais em prol dos quais se adota uma determinada interpretação, aprova-se uma lei, adota-se uma determinada medida.
Lula foi preso em nome da Justiça, dizem uns, e outros preferem dizer que se for solto a Justiça será feita. Quem prendeu Lula foi Moro! A mídia destaca isso o tempo todo nos jornais colocando o rosto de Moro frente a frente com o de Lula. A mídia é o quarto poder que age como o grande vilão jogando os poderes uns contra os outros para que uma ideologia se sobreponha. Quem dera que fosse em nome da democracia! Faz de tudo um espetáculo como num clássico do campeonato brasileiro. No fim diz que nada é ideológico. E a maneira que adota para fazer isso é a personalização, exatamente como faz para endeusar jogadores e músicos.
Personaliza a ideologia da esquerda em Lula, da direita em Bolsonaro e a ideia de “centro”, a que os conglomerados audiovisuais querem ver no poder, é despersonalizada. Defendem a política econômica do governo Temer, mas o deprecia. Tudo é para esconder o que realmente está em jogo.
Será que é possível despersonalizar nossa cultura?A imagem é mais importante que a ideia, ou melhor, a imagem é a ideia. O que explica a ascensão de Bolsonaro, por exemplo? Em um país onde um partido de esquerda (PSOL) atende muito mais as necessidades das forças de segurança e das famílias afetadas pelas mortes excessivas de policiais, um indivíduo de direita, que nada faz em prol do que defende, tem mais adesão das polícias. O que explica tudo isso senão o discurso e a personificação/personalização?
Só porque não há mais um Goebbels ou o DIP, não quer dizer que a mídia não esteja sob o controle de alguma ideia. Aliás, ela usa esse argumento, acusando os governos totalitários, para agir da mesma maneira manipuladora. Ela se despersonaliza para personalizar tudo que pode agilizar a dominação dos seus financiadores. Ela personaliza os poderes e joga um contra o outro, enquanto, ela mesma, se põe fora do jogo para, em seguida, apresentar uma solução sensata, moderada e isenta de qualquer ideologia escatológica. Funciona, definitivamente, como um quarto poder que veio no lugar da Igreja para infligir o poder ideológico.
A teatralização da política
O poder usa de um elemento chave: a dramatização. Ele se manifesta de forma teatral através de imagens, tradições, símbolos etc. E tudo tem, por sua vez, um fim persuasivo. Pois, “depende da arte da persuasão, do debate, da capacidade de criar efeitos que favoreçam a identificação do representado ao representante”.2
A prisão de Lula foi uma dramatização, um espetáculo promovido pelas classes dominantes que não querem mais os seus serviços. Até porque, para o que elas queriam, não era necessário prendê-lo. Usaram-no e o jogaram fora. Mas é preciso fazer disso um espetáculo. E um espetáculo precisa de atores e público. Uma multidão antecede o dia da votação no STF, uma multidão se aloja no ABC, e outra acampa em Curitiba. Tudo é filmado, fotografado e comentado.
Não importa o que a pessoa representa, mas a máscara que usa, isto é, a representação que faz de si mesma, ou que fazem dela. Como um político de um partido pequeno como Bolsonaro conseguiu tanta visibilidade e, por seu turno, alguém do PCB, PCO, etc., é tão oculto? Além da diferença dos grupos de investimento (bancadas da Bala, Bíblia e Boi), não se trata de uma questão de personificação/personalização?
Precisamos imediatamente de uma despersonalização da nossa cultura. Pensar na humanidade, nas ideias humanitárias, é o único caminho para isso. Não haverá democracia enquanto houver o poder personalizado. Enquanto o quarto poder tiver tanta influência.
Nós acabamos com o nacionalismo, passamos pelo absolutismo, pelo coronelismo, pelas diversas formas de poder pessoal, mas não acabamos com a personificação do discurso político. Este fenômeno continua a trafegar pela esquerda e pela direita.
É um fato que as manifestações populares que não tiveram líderes (muito comum nos últimos anos) nada resolveram. Vemos o que aconteceu no Egito e no Brasil de 2013. Talvez por isso, a personificação voltou a fazer parte da nossa realidade política. Contudo, temos que lembrar que toda a personificação pública, no mundo atual, é fabricada pela mídia. Moro foi fabricado pela Globo e pelas redes sociais. Lula também. Inclusive como o principal representante da esquerda, aproveitando-se de uma trajetória cheia de idas e vindas que tem a intenção de denegrir a imagem do ex-presidente e dos projetos de oposição ao capital.
Não haverá democracia enquanto houver o poder personificado pelos meios de comunicação de influência. Eles precisam criar Moros, Bolsonaros e Lulas, santos e demônios, para isentar as forças econômicas que impulsionam o funcionamento da política. É muito mais fácil odiar e amar quando o objeto desses sentimentos tem um rosto.
1 SENNET, Richard. O declínio do homem público. Trad: Lygia Araujo Watanabe. Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 234.