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POLÍTICA
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Julian Rodrigues*
Difícil e arriscado escrever nesse momento, quando o impacto da vitória do neofascista é tão devastador. O momento é de dor, de tristeza, frustração, ansiedade, pessimismo, até desespero e pânico.
Há várias formas de elaborar a derrota. Uns têm força para amparar e acolher, outros precisam ir mais fundo no luto, alguns já estão pensando de pé e conclamando a nova resistência. O silêncio e a reflexão, entretanto, ajudam quase todos. A hora é de estarmos mais juntos do que nunca, acolhendo-nos mutuamente.
Para tentar colaborar nesse processo de avaliação, reposicionamento e volta por cima, listo abaixo algumas ideias, em tentativa de sintetizar muita coisa boa que li por aí e outras tantas que tenho elaborado.
28 de outubro de 2018 marca uma profunda mudança histórica no Brasil. Acabou de vez o sistema inaugurado com a “Nova República”. A vigência do que sobrou da Constituição de 1988 será cada vez mais formal. O Estado de exceção, que começou com o golpe parlamentar-judicial de 2016 caminha para se institucionalizar. Bolsonaro liderará um governo militarizado, com apoio de grupos fascistas organizados, do aparato policial nos estados e de grande parte do Judiciário e do Ministério público - que aderiram ao seu projeto antidemocrático.
A vitória de Bolsonaro começou a ser construída em 2013: a narrativa anti-sistêmica (pela direita) impulsionada via uso massivo das redes sociais - a partir de tecnologias, conexões e financiamento internacional. Trata-se de geopolítica pura, (lembram do velho imperialismo?) de interesses econômicos muito poderosos, nacionais e estrangeiros. O golpe se construiu a partir da apropriação pela direita das “jornadas de junho” e se fortaleceu com a derrubada de Dilma. A Lava-Jato foi fundamental ao aplastar a esquerda e desmoralizar a centro-direita, destruindo o antigo sistema político e abrindo caminho para os neofascistas. Mas, sempre é bom lembrar: sem a prisão de Lula seria inviável consolidar o Estado de exceção pela via eleitoral. O processo eleitoral de 2018 sempre esteve, desde seu início, comprometido pela prisão política do líder das pesquisas. Até a ONU reconhece esse fato.
Operando massivamente via Facebook e WhatsApp, o neofascismo tornou-se majoritário. A estratégia (já aplicada nos EUA) pode ser resumida assim: substitui-se os debates dos temas sócio-econômicos por uma agenda cultural reacionária, mobilizando fundamentalismos religiosos e todo tipo de conservadorismo. Uma verdadeira cruzada anti-direitos humanos, obscurantista, inimiga das liberdades individuais, dos direitos civis, dos direitos sexuais e reprodutivos. O “pânico moral” foi explorado até o limite, potencializando o medo, ressentimento e a insegurança, convencendo as pessoas que sua família, sua fé e seus valores estavam sob ameaça da “esquerda”, dos “comunistas”, dos “gayzistas”, das “feministas”.
Claro que o sucesso dessa ofensiva de extrema-direita só foi possível com a complacência (e, na reta final, apoio explícito) da grande mídia conservadora, dos capitalistas nacionais, do mercado financeiro e também dos partidos e lideranças da direita liberal, da centro-direita e do centro. Ao derrubar Dilma e rasgar o pacto de 1988 os tucanos da vida mobilizaram os monstros fascistas. E acabaram engolidos por eles. O único partido que sobreviveu, ainda que muito machucado, ao tsunami reacionário, foi o PT.
Aliás, os 45% conquistados por Haddad, as bancadas e os governadores eleitos pelo PT mostram uma vitalidade que chega a ser impressionante. A campanha antipetista foi avassaladora, articulada, sistemática, cotidiana, criminosa. Contaminou inclusive setores progressistas das classes médias. O debate da corrupção foi tão instrumentalizado que acabou sendo criado quase um senso comum de que o PT é o maior responsável, não só pela roubalheira, mas por todos os males do Brasil. Petistas eram quase como os judeus da Alemanha hitlerista. Todavia, contra tudo isso, Haddad, Manu e Boulos brilharam, se agigantaram. Temos jovens líderes para impulsionar a travessia.
Sim, é claro que o PT cometeu muitos erros, e os governos Lula e Dilma provavelmente fizeram menos do que poderiam. Mobilizaram pouco as forças sociais e subestimaram a disputa cultural-política. E houve muitas insuficiências e erros na campanha Haddad; e o Partido precisa de fato se reconectar com as massas trabalhadoras. Tudo verdade. Mas nada disso tira a força e o brilho do PT, que continua em pé, mesmo depois da derrubada de Dilma e do encarceramento de Lula. Desde 1989, o PT ganhou ou foi o segundo colocado em todas as eleições presidenciais. Os balanços a serem feitos - com tranquilidade e rigor, mas com honestidade intelectual, não podem ignorar o cenário internacional, a violência das elites brasileiras, o tamanho da ofensiva operada contra a esquerda. Avaliações erradas foram feitas, mas acertamos no geral. Lula foi, mais uma vez, um gênio estratégico e comandou o processo no primeiro turno, desde aquela cela fria. O desastre aconteceria se o maior partido da classe e a maior liderança do povo colocassem nosso destino nas mãos do errático indivíduo Ciro Gomes, o neutro (aquele termina menor que o youtubber Felipe Neto).
Apesar de o governo Bolsonaro representar a vitória do neofascismo e um novo tipo de regime político, não está dada a velocidade e a profundidade das medidas autoritárias e da repressão institucional aos movimentos sociais, às esquerdas, aos sindicatos, aos intelectuais. Haverá contradições e obstáculos a uma escalada ditatorial, mesmo no seio do bloco que elegeu o capitão. Há constrangimentos internacionais, sobretudo em países europeus, na grande mídia liberal. Bolsonaro não é Trump e o Brasil não é os EUA. Ele não terá condições de sair chutando a ONU, a OEA, os tratados internacionais, a Rússia, a China.
Chamo a atenção para outro aspecto: o Brasil nunca teve um governo autoritário, que ao mesmo tempo, executasse uma política ultraliberal de desmonte do Estado, sem nenhum crescimento econômico. Os governos militares, na maior parte do tempo, promoveram o fortalecimento do Estado e políticas econômicas expansionistas. Os governos de FHC implantaram o neoliberalismo, com desemprego e crise econômica, mas mantendo as liberdades civis e a democracia. Um governo Bolsonaro se desenha como radicalmente liberal, anti-desenvolvimentista, destruidor de políticas públicas, e, ao mesmo tempo, regressivo em termos de liberdades individuais, progressivamente ditatorial. Qual a sustentabilidade de um regime que ataca as massas trabalhadoras, não gera crescimento econômico e ao mesmo tempo sistematicamente persegue amplos setores médios?
Por outro lado, não podemos ter nenhuma dúvida. Bolsonaro ganhou, está legitimado, haverá uma lua-de-mel. A eleição acabou para a maioria das pessoas, que vão tocar sua vida. É hora de termos cautela e inteligência. Reconhecer a gravidade do período histórico, não nos expormos, combatermos arroubos vanguardistas. Há tempo para tudo, inclusive para respirar, pensar e começar um processo de reorganização. Não se trata de covardia ou recuo, pelo contrário. Precisamos estar vivos para resistir. Vai demorar um pouco para virar o jogo. Menos do que eles pensam e mais do que a gente gostaria.
Não podemos adiantar o calendário político-histórico, o processo social. Bater de frente agora vai nos isolar, passaria a impressão de que não aceitamos a derrota, que torcemos contra o Brasil. Recusar dois erros simétricos: subestimar a força do novo governo ou subestimar as nossas próprias, que só se efetivarão se nos mantivermos junto às massas trabalhadoras e aos setores médios progressistas. A oposição a ser realizada pelo campo popular se dará respondendo às medidas regressivas que o novo governo tomar, aquelas que afetem diretamente os direitos do povo. É preciso aguardar a experimentação concreta que as massas farão quando vier o pacote de maldades de Bolsonaro - e a vida ficar muito pior.
Manter o equilíbrio, a serenidade e a força pra resistir é imprescindível. Sem nos auto-enganar sobre o que está por vir. As declarações de Bolsonaro não eram retóricas. Ele atiçou e referendou tudo de ruim. A violência vai recrudescer. Nós, LGBTI (sobretudo as travestis), militantes de esquerda, lutadores sociais, mulheres, negros, intelectuais, professores somos alvos prioritários. Vamos respirar fundo e nos ajudar. “Ninguém solta a mão de ninguém”.
De imediato, coloquemo-nos a nos reinventar, pessoal e politicamente. Nos reeducar para viver nesses tempos de neo-ditadura: aprender com os mais velhos como se faz militância em tempos sombrios. Nos desafiar a realizar coisas novas, cuidar mais da nossa saúde física e mental, fazer atividades físicas, aprender defesa pessoal, segurança digital, organização em coletivos de base. Ter outra relação com a internet, com a exposição pública, começando por não difundir mensagens sem checar antes (estamos no auge das fake news, que são usadas para gerar pânico entre nós, inclusive).
Para meus irmãos e irmãs lésbicas, travestis, homens trans, bissexuais, gays, mulheres transexuais, pessoas intersexo: por favor, não entrem em pânico. E vamos reaprender a viver no Brasil. Nada de voltar para o armário, mas não podemos nos colocar em risco. Sim, haveremos de evitar demonstrações públicas de afeto, não frequentar determinados locais, andar em grupo, aprender a nos defender fisicamente, todo cuidado com aplicativos e encontros casuais. Tudo isso compõe um manual básico de sobrevivência nesses tempos trevosos.
Coletivamente, haveremos de reconstruir nossas relações, perspectivas, formas de viver e de resistir. Cuidar uns dos outros como nunca fizemos. Solidariedade e amor, muita generosidade entre nós, que eles destilam ódio e mediocridade apenas. Tomar café, jantar e almoçar com os nossos queridos. Estudar e escrever, pensar para ajudar a entender melhor o que está acontecendo. Fazer reuniões pequenas, re-tecer conexões, caminhar, investir na micro-política, em pequenas intervenções, nas coisas saborosas. Respeitar as características e limites de cada um. Tirar tempo para ler um romance, ver um filme bacana, fazer maratona de séries, escrever um poema, plantar uma flor, brincar com os gatos e cachorros, beber um vinho e filosofar com os melhores amigos.
Por último: a vitória de Bolsonaro nem de longe é a pior coisa que já aconteceu no Brasil. Os que vieram (e tombaram ou venceram) antes de nós enfrentaram condições muito mais difíceis. Esse ciclo regressivo vai passar. Nós confiamos na história, e sempre soubemos que “a vida só é possível se for reinventada”. Como sempre, estamos fadados a começar tudo de novo, mas “vamos de mãos dadas”.
*Julian Rodrigues é professor, jornalista gay e comunista.