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"Do ponto de vista dos princípios do Estado Democrático de Direito, a sentença de Marco Aurélio Mello que garantiu liberdade de Aécio Neves está correta", avalia Paulo Moreira Leite, articulista do 247; "Absurdo foi manter o petista Delcídio Amaral em prisão preventiva por 85 dias, sem direito a se defender no STF ou no Senado, apenas para fazer delação premiada", diz ele.
Por Paulo Moreira Leite no Brasil 247
Num país que em 2012 encenou a comédia judiciária conhecida como Mensalão PSDB-MG, chega a ser espantoso encontrar reações indignadas depois que o ministro Marco Aurélio Mello decidiu revogar o pedido de prisão preventiva de Aécio Neves, um ano e sete meses depois que o STF enviou o senador petista Delcídio Amaral para uma temporada de 85 dias na cadeia -- sem julgamento, é claro.
O povão sempre identificou o braço seletivo da Justiça, criando a expressão de que só apanha Pobre, Preto e Puta.
As ilusões sobre a isenção política do Judiciário, inclusive para demonstrar uma inegável opção preferencial por um dos lados do espectro político, costumam ter alguma aceitação nas camadas superiores da sociedade, mesmo intelectuais e militantes de esquerda.
Foram eles, por sinal, que ficaram em silêncio em novembro de 2015, quando o PT abandonou Delcídio a própria sorte, julgado no STF e no Senado sem direito à defesa. O então senador encontrava-se recolhido, incomunicável, numa cela da Polícia Federal, em situação que contrariava o artigo 53 da Constituição Federal que define regras precisas e excludentes para a prisão de parlamentares no exercício do mandato.
A reação de muitas pessoas diante da AP 470 e da Lava Jato foi de paralisia e prostração, posturas que expressam dúvidas e incertezas.
Minha opinião é que a prisão de Delcídio foi errada --como deixei claro na época-- e a de Aécio também seria.
Estou convencido que, no ponto de vista dos princípios do Estado Democrático de Direito, a decisão de Marco Aurélio Mello está correta e seu texto de 16 páginas merece um reparo.
O ministro empregou o adjetivo "elogiável" para qualificar a carreira do senador mineiro, classificação fora de lugar numa decisão baseada em regras jurídicas que deveriam ser respeitadas ainda que a carreira de Aécio pudesse ser definida, como acontece na visão de tantos brasileiros, inclusive deste humilde blogueiro, como "lamentável" e mesmo "nociva".
Fora esta palavra, as páginas escritas por Marco Aurélio Mello formam um conjunto coerente, que pode ser lido do ponto de vista da análise da situação geral do país para o caso específico de Aécio Neves -- ou vice-versa -- sem perder o sentido nem a lógica. Sua importância reside no retrato da situação brasileira.
Falando da conjuntura, Marco Aurélio desenha um ambiente de incertezas e riscos. Reconhece um quadro político particular ("tempos estranhos") onde, em voz de atravessar atribuições de outros poderes, recomenda-se a "autocontenção judicial". Contrariando a postura da maioria do STF, alinhada com o PGR e afastada do equilíbrio que deve marcar a atuação dos magistrados, Marco Aurélio faz um elogio do equilíbrio, visto aqui como "uma virtude essencial. É hora de temperança, de observância do racional, evitando-se atos extremos." Enfático na condenação de atos fora da Constituição, ele aponta para um ambiente de risco: "Quando o Direito deixa de ser observado, vinga o nefasto critério da força e tudo, absolutamente tudo, pode acontecer." Engraçado imaginar o que um ministro do Supremo, a mais alta corte do país, quer dizer com tudo pode acontecer, não é mesmo?
Seguindo no mesmo tom, Marco Aurélio recorda que é preciso observar a separação entre poderes e o sufrágio universal, evitando medidas que nós podemos chamar de abusivas: "o Judiciário não pode substituir ao legislativo, muito menos em atos de força a conflitar com a harmonia e a independência dos poderes." Chegando ao caso de Aécio, o ministro recomenda "atenção ao sufrágio universal". Faz referências explicitas a suas votações. Lembra que o chamado de "afastamento do mandato", que retirou Aécio das funções para as quais foi eleito, não passa de uma "cassação branca", ocorrida "sem existência sequer de um processo-crime". Indo mais fundo, sublinha: mesmo que se demonstrasse um flagrante de crime continuado, única previsão legal para a perda do mandato, "há que se ter a deliberação da Casa Legislativa." Ou seja: estava tudo errado.
Como se pode dizer que esteve ainda mais errado no julgamento de Delcídio pelo Supremo.
Gravado numa conversa -- induzida -- onde gabava-se de sua capacidade para alterar votos na Corte, o senador do PT foi condenado por magistrados que deveriam considerar-se impedidos para o julgar um réu que os acusava, lembrou o procurador aposentado Roberto Tardelli:
"Nessa situação bizarra, a vítima julgou e mandou prender seu agressor, o que representa ofensa ao mais palmar dos princípios de direito, a imparcialidade do juiz. Imagine o amigo se o dono do carro que você amassou na rua fosse a mesma pessoa que julgasse a indenização que ele mesmo propôs; imagine se o juiz que julgasse a guarda dos filhos fosse também o pai em litígio... foi o que ocorreu: os Ministros, que se sentiram gravemente ofendidos julgaram o ofensor; resultado: cana; recuamos séculos e, obliquamente, tornamos privada a Justiça Pública."
Cabe recordar, nos dois casos, a noção de que dois erros não produzem um acerto. Desde a cassação de Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, aliados de primeira hora do golpe militar de 64, ocorrida numa segunda escalada repressiva da ditadura, nós sabemos que atos contra a democracia se voltam, cedo ao tarde, contra aquela fatia da sociedade que mais precisa dela -- os trabalhadores e a população pobre. Como mostram as estatísticas inaceitáveis de violência nas periferias e de prisões sem sentença judicial, que atingem perto de 40% de nossa população carcerária, são estes que mais necessitam da presunção da inocência, do respeito absoluto aos direitos de defesa.
Mais do que nunca, o que está em jogo, no Brasil de 2017, é a defesa da Constituição-Cidadã, que conserva o mais amplo conjunto de direitos e liberdades de nossa história. Vale repetir Marco Aurélio: "Quando o Direito deixa de ser observado, vinga o nefasto critério da força e tudo, absolutamente tudo, pode acontecer."
A disposição de defender as garantias de valor universal de modo coerente, sem distinção política, raça, credo, origem, diferencia as forças que podem falar pelo conjunto dos brasileiros e aquelas que estão voltadas para o privilegio e a desigualdade. É aqui que se pode denunciar e combater a seletividade da Justiça.
Essa é a questão.