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Reconhecido por ser um dos maiores especialistas em direito penal brasileiro, o professor Nilo Batista é um crítico ferrenho ao sistema de encarceramento e ao modelo de comunicação brasileiro. Para o fundador do Instituto de Criminologia do Rio de Janeiro, o oligopólio da mídia com seus interesses econômicos e políticos é um dos principais fatores para a atual instabilidade política.
Por Eduardo Sá do Fazendo Media
Reconhecido por ser um dos maiores especialistas em direito penal brasileiro, o professor Nilo Batista é um crítico ferrenho ao sistema de encarceramento e ao modelo de comunicação brasileiro. Além de autor de diversos livros sobre o assunto, exerceu também a função de governador do Estado do Rio de Janeiro em substituição a Leonel Brizola na década de 1990. Embora não atue mais no cenário político diretamente, não deixa de analisar criticamente os processos em curso no Brasil.
Por advogar em defesa da empresa Petrobras há quase 20 anos, o professor não pode falar sobre a Operação Lava Jato. Mas na entrevista ao Fazendo Media analisa o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, intitulado por ele como artificioso. Para o fundador do Instituto de Criminologia do Rio de Janeiro, o oligopólio da mídia com seus interesses econômicos e políticos é um dos principais fatores para a atual instabilidade política. A ascensão de procedimentos autônomos por meio do sistema penal também é preocupante, no sentido de facilitar atividades fascistas na sociedade.
Em relação ao impeachment, há pouco tempo saiu na mídia que as pedaladas foram inconsistentes. Qual a sua avaliação sobre esse processo, do ponto de vista jurídico?
“Não tenho nenhuma dúvida que o procedimento de impeachment foi abusivo”, alerta Batista. Foto: Eduardo Sá/Fazendo Media.
Não tenho nenhuma dúvida que o procedimento de impeachment foi abusivo. Ou seja, o poder de impedir o Presidente da República tem dispositivos legais que devem ser interpretados absolutamente de forma restrita porque cortam as prerrogativas e liberdades alheias. O motivo real do impeachment foi a queda da popularidade em decorrência dos problemas econômicos que afetaram efetivamente a vida da população e foram aproveitados pela mídia, que é cúmplice do procedimento político que aconteceu. Não tenho nenhuma dúvida de que teremos esse problema enquanto a comunicação social no Brasil for completamente cartelizada nas mãos de uma dúzia de famílias que detêm a propriedade dos meios de comunicação. Enquanto prevalecer isso será possível esse tipo de manipulação.
Os interesses midiáticos são claros, mas não são os principais. E os poderes econômicos e políticos por trás?
A mídia participou intensamente e tem também seus interesses econômicos e políticos, que não por acaso coincidem perfeitamente com todo o programa economicamente reacionário do atual governo. Basta você ver a reforma da previdência, a reforma da legislação trabalhista, a reforma do ensino médio no sentido conservador atrasando o processo pedagógico e tudo mais. A imprensa fez a campanha e continua fazendo.
Essas famílias e seus serviçais detêm o monopólio da informação e da crônica, apesar do noticiário consistir quase todo em propaganda e do comentário ser quase sempre ideologia; eles criam desejos e expectativas mas criam também os fatos que os satisfariam, precisamente para que aconteçam; escolhem aquilo que deve ser noticiado e aquilo que deve ser ocultado; destilarias de ódios e preconceitos, eles pretendem ser simultaneamente paladinos da moral e porta-vozes do mercado. Quando se trata de rádio ou TV, são concessões públicas a serviço em tempo integral dos interesses dos concessionários e não do público.
A crise que vivemos tem origem basicamente na investigação espetaculosa e direcionada de modelos viciosos de financiamento de campanhas eleitorais. É significativo e chocante que, sendo o destino final dos recursos despendidos em campanhas eleitorais a publicidade e comunicação social, os personagens desse complexo econômico – agências de publicidade e veículos de comunicação – só excepcionalmente e secundariamente são criminalizados. Afinal, os admiradores da técnica “follow the money” deveriam explicar porque razão o dinheiro não é seguido até o seu destino final.
“Temos um presidente do século XIX”, critica o advogado. Foto: Eduardo Sá/Fazendo Media.
O preocupante é que nesse modelo (de impeachment) o poder midiático soberanamente dá as cartas: o instituto de pesquisa constata a impopularidade; as agências de publicidade organizam suas campanhas e está quase tudo feito. Sim, a pequena contribuição do Congresso Nacional, de joelhos perante a mídia, será apenas destravar a lâmina da guilhotina. O mercado comandou a República.
Você acha que em função do que ocorreu e devido à instabilidade política que tende a piorar abre algum precedente jurídico que possa fechar o regime? Tem algum sinal nesse sentido?
Não abre nenhum precedente, porque é um julgamento tão peculiar, único, que ficará como um episódio isolado. Essa instabilidade política é decorrência da artificialidade do impeachment, então o Michel Temer vai carregar até o último dia dele um déficit de legitimidade. Até na véspera dele passar o cargo ao sucessor terá alguém gritando Fora Temer na sessão de transmissão. E se houve abuso de poder econômico daquela chapa, ele tinha que dançar. Está sendo apurado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), então se houve ele está absolutamente no mesmo barco. Provavelmente pela larguíssima experiência com essas práticas viciosas, e que tem nisso também um artifício: passaram a ser criminalizadas a partir de certo momento.
As práticas de financiamento eleitoral sempre foram viciosas, houve com o FHC e nos tempos de Collor era exatamente o problema com uma sobra de contribuição de campanha. Só que não foi feito como está sendo agora uma auditoria de onde provinham aqueles recursos, e ninguém imaginava também que havia um esquemão desse porte. Mas quando digo ninguém não excluo a classe política também, que está sempre demonizada pela anti política. Porque o fascismo explora a anti política. Só que estão falando de alguns problemas verdadeiros, ainda que numa perspectiva sem nenhuma condição de futuro. O nazismo cresceu em cima de insatisfações reais.
Desde as mobilizações de 2013 com as manifestações há um escancaramento de uma narrativa de ódio e intolerância, e o Bolsonaro que representa ampla parte desse setor está com milhares de votos. São sinais de que as coisas podem ficar feias nos próximos anos, inclusive nas eleições?
"Pode ficar mais feio do que está, mas já está bastante feio", afirma o advogado. Foto: Eduardo Sá/Fazendo Media.
Pode ficar mais feio do que está, mas já está bastante feio. Você viu as declarações do presidente no dia da mulher? O que é isso?! Temos um presidente do século XIX, porque aquele é um estatuto da mulher brasileira no império. Se você pegar um autor civilista da época, Trigo de Loureiro, você verá que o poder marital em seu livro é puro Michel Temer. Então já estamos numa situação grave, mas há uma coisa um pouco mundial também. Olha o que aconteceu nos EUA, Inglaterra e pode acontecer na França. A direita se remexeu, conseguiu beber um pouco mais de sangue e está vindo como os vampiros. Quem sabe a crise do capitalismo vai se dar precisamente nessa regência.
Em relação ao Bolsonaro, acho muito difícil que as forças políticas que deram sustentação e ainda olham com alguma compreensão a nossa ditadura se sintam representados por ele. Porque não são todos essa grossura, seria um erro enorme comparar Bolsonaro com Golbery e outros intelectuais que participaram daquilo. As forças armadas têm seus intelectuais, alguns até de esquerda como foi o caso do Nelson Werneck Sodré. Mesmo pela direita você tem muitos intelectuais que têm uma reflexão sobre a nação brasileira, sua história e destino. Não acredito que essas pessoas se sintam representadas no Bolsonaro, na sua grossura e rudeza meio nazista. Os verdadeiros intelectuais das Forças Armadas sabem que nem sempre a vaca que eles seguraram foi ordenhada republicanamente, então a candidatura Bolsonaro cresce no “escuta zé ninguém”, numa coisa bem fascista. Vamos ter que fazer uma reforma política, está claro que há um desequilíbrio entre os poderes. O judiciário, por exemplo, está legislando. E o legislativo, que é um grande poder, está só no estereótipo. Claro que foi o culpado, mas a educação civil ministrada pela mídia resulta nas escolhas eleitorais.
Mas como se dá uma reforma política, que a Dilma mesmo tentou, com um Congresso conservador como esse? Eles não têm interesse em mudar as suas próprias regras.
Naquela ocasião eles achavam que iam dispensar a Dilma e tudo ia continuar muito bem, mas não foi assim que a coisa se deu. Olha a discussão nesse momento, que está rachando os partidos: uma contribuição que uma empresa estabelecida e autorizada, cheia de alvarás e, portanto, fiscalizável faz uma doação a você e imaginar que isso pode ser indício porque você está num inquérito… Sinceramente, acho muito equivocada a decisão orientada pelo ministro Fachin. Nesse ponto concordo juridicamente com o Gilmar Mendes, de quem devo discordar politicamente em quase tudo. Achei que ele foi corajoso, porque mais de uma vez foi contra a opinião da mídia. Isto para mim faz a primeira qualidade de um juiz, não se subordinar a ela.
“Isto para mim faz a primeira qualidade de um juiz, não se subordinar a mídia”, disse. Foto: Eduardo Sá/Fazendo Media.
Ela influi massivamente na opinião pública, inclusive vazando gravações que sequer chegaram à polícia ou foram analisadas.
O problema é essa colocação do sistema penal em tudo, o poder que lhe está sendo concedido… O fascismo avança pelo sistema penal, a reivindicação de autonomia funcional para a polícia é uma coisa autoritária, antidemocrática. É um absurdo, tem que ter metas. Olha para todas as fotografias no século XX, só no fascismo é assim: como o sistema penal está no meio de tudo foi assim na Itália fascista, na Alemanha nazista e até mesmo na União Soviética num certo momento. Todas as ditaduras latinoamericanas em nome da segurança nacional, enfim, nós sabemos o que é. Quando o sistema penal tem um protagonismo muito grande, o fascismo cresce através dele.
Vejo um abandono de uns padrões. Por exemplo: no judiciário sempre foi comum a consideração de que frequentemente a esposa ou companheira do autor de um crime foi colocada numa sociedade comercial, porque para você fazer uma sociedade tem que ter dois sócios, então muitas vezes usam familiares. Sempre os tribunais, inclusive o Supremo Tribunal Federal, teve grande sensibilidade para isso. Dá para colocar na carroceria de um caminhão os acórdãos do STF, dos Tribunais de Justiça dos estados, que compreendem que a mulher ou o filho foi colocado ali detentor de uma porcentagem só para fazer sociedade. E na hora de julgar isso está advertido. Criminalizar familiares da pessoa acontece quando o dispositivo delação premiada passa a ser utilizado. Assim já começa a parecer tortura, o abandono daqueles paradigmas jurisprudenciais anteriores.
Há também um abuso de prisões provisórias, porque numa democracia a princípio você responde em liberdade. A pena só é executada, como disseram os constituintes em 1988, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Mas o Supremo corrigiu a Constituição, da qual ele deveria ser o guardião. Ele não tem o direito de questionar os constituintes, mas isso aconteceu há meses atrás. Na Constituição dizia que ninguém será considerado culpado senão após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, e o Supremo se reuniu e alguns ministros falaram em nome da sociedade. Como pode falar em nome da sociedade um ministro que nunca teve um voto? Nunca representou o povo, ele está ali numa relevantíssima missão, que deve ser cercada do maior respeito, mas não está legitimado para falar em nome da sociedade. Falam em nome da sociedade os representantes do povo que foram eleitos. Pode ser o mais virtuoso dos ministros do Supremo e o mais imbecil dos parlamentares, mas tem essa diferença. E em nome da sociedade retificaram a presunção da inocência, que tinha sido outorgada aos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil pelos representantes legítimos do povo brasileiro reunidos em Assembleia Nacional Constituinte. O guardião da constituição fez um retrocesso, e retrocedeu a presunção de inocência para a condenação em segunda instância.
Em paralelo a esse processo político, econômico e jurídico de cúpula, ocorreram alguns problemas de segurança pública na base da sociedade. Rebeliões nos presídios, greves das polícias e o aumento da violência. Como você enxerga o processo social nessa conjuntura?
“Encasquetou-se no boçal coletivo brasileiro que com pena se resolve”, afirmou. Foto: Eduardo Sá/Fazendo Media.
Estamos pagando o preço do direito penal simbólico, que é um grande recurso político no Brasil. Toda vez que tem uma transição econômica o sistema penal se adapta. Na transição do feudalismo, por exemplo, para a exploração capitalista da terra houve uma mudança no sistema penal. Na Inglaterra ocorreu um grande cercamento, e o cultivo feudal foi substituído pela criação de ovelhas. Para você explorar no modelo trienal precisa de 100 camponeses e para você criar as ovelhas precisa de seis, ou seja, 94 estão desempregados. Isso aconteceu também na transição para esse novo capitalismo vídeo financeiro transnacional na crise do capitalismo industrial. Henrique VIII enforcou mais de 70 mil ladrõezinhos, e aqui começamos a prender os desempregados da nova economia. Muitos empregos não existem mais, e isso acompanha o processo histórico. Com a nossa incompreensão começamos a prender e tudo se solucionar com a prisão, encasquetou-se no boçal coletivo brasileiro que com pena se resolve. Então fizemos o maior encarceramento e chegamos no top quatro mundial. Estamos na liderança na quantidade por tempo, mas os tribunais americanos já perceberam e estão mandando desencarcerar. Na Califórnia houve uma ordem que foi mantida pela Corte Suprema para diminuir o efetivo encarcerado, mas nós continuamos prendendo.
Não existe prisão boa, a prisão é uma pena moderna. Não houve na antiguidade nem na idade média, salvo já na baixa idade média com a prisão canônica que já era terrível. Então a prisão é produto do capitalismo industrial, por isso é tão parecida com uma fábrica. Na criminalização da greve e da vadiagem você tem todo o esquema dos sistemas penais do capitalismo industrial. Agora estamos prendendo porque todo mundo acha que tem que prender. A Lei de Drogas que o PT fez para melhorar piorou. Continuou prendendo, tivemos um super encarceramento. Dizem “vamos parar tudo para criar mais penas”, mas precisamos é diminuir porque temos muita gente presa.
Esses fenômenos mais recentes traduzem, então, esse cenário construído nos últimos anos?
Há uma violência social, mas com o super encarceramento o ambiente piora ainda mais e isso faz parte de uma economia. O teu adversário é a indústria do controle do crime, que já chegou na hospedaria punitiva aqui também. As penitenciárias privadas são um pedaço da indústria do controle do crime, e para isso tem que ter jornalistas querendo pânico, professores de direito penal dizendo que o crime é o principal mal, todo um ambiente. São os facilitadores da indústria do controle do crime.
E no Rio de Janeiro especificamente, como você vê esse tema?
Agora ficou claro para todos que a UPP foi um grande fracasso, porque foi muito difícil enxergar isso. Particularmente nalguns setores da mídia, que participaram tanto. Para nós do Instituto de Criminologia do Rio sem surpresa: desde o primeiro momento falamos que seria um fracasso.