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"O impeachment da presidenta Dilma conseguiu reunir as duas patologias da lei. Justiça com as próprias mãos e higienização de seus executores. Onde estão os que queriam a limpeza do país e diziam que Dilma era a primeira e depois viriam os outros? Onde estão os covardes que se escondem atrás da patologia da lei? Os que se juntam no 'bom senso' desaparecem na hora de assumir que quem quer fora Dilma, quer fora Temer. Caso contrário: golpe."
Por Christian Dunker*, no Blog da Boitempo
Temos um fascínio pela ideia de lei, pois ela representa o limite entre o que temos que aceitar e o que é possível mudar, no mundo, nos outros e em nós mesmos. A lei contém dentro de si tudo o que nós repudiamos e interditamos em nós mesmos, mas ao mesmo tempo condiciona nossa liberdade. Em nome da lei aceitamos violência, poder e força. Contudo, a lei pode tornar-se um fetiche quando se unifica em uma totalidade estática e imóvel e sem história. Isso ocorre quando as diferentes formas da lei, como as leis da natureza, a lei da gravidade, as leis de Deus, as leis do Estado e as pequenas leis que regulam nossa vida diária. Cada vez que alguém tem sua razão reconhecida temos o embrião de uma lei. Por isso, com relação às leis ocorre o mesmo que Descartes dizia do bom senso, ou seja, que ele é a coisa mais bem distribuída do mundo, ninguém se atribui sua falta e todos se arrogam possuí-la. Foi também o “bom senso” que estabeleceu que “nada poderia ser pior do que o governo Dilma Rousseff”.
Há um conceito psicanalítico de lei que versa justamente sobre o caráter híbrido da lei. Entendida como conjunto de regras, valores e convenções que se transmitem a cada um de nós pela educação, pela cultura e pela família, como uma espécie de mito oral ou de mitologia escrita, a lei é particular porque tem dono, pois seu conteúdo pertence àquele contexto específico de aplicação, determinado pelo pai, pela mãe ou pelas figuras imediatas de autoridade. Foi assim que nos tornamos todos nós juízes caprichosos, fundindo e aplicando a lei em um julgamento coletivo que levou ao afastamento da presidenta, cada qual com seu critério, sua interpretação, sua forma de julgar.
Mas a autonomia, por meio da qual tornamos aquilo que nos é imposto, concorre com dois afetos fundamentais: o amor e o respeito. Ela exige uma concepção e tempo que nos impõe primeiro aceitar regras que não entendemos para, em seguida, nos apossarmos da herança recebida. Em uma operação de simbolização, substituímos nossa teoria inicial sobre a lei, que a identifica com seu executor e com o conteúdo da regra, pela forma da lei. Desta forma passamos das regras do espaço privado da família para a liberdade de uso público e impessoal da razão. Daí adveio nossa crença em figuras como Supremo Tribunal Federal, os peritos, os advogados, os professores, ou seja, os especialistas na forma da lei.
A lei formal do Estado não se sobrepõe à lei caprichosa da família porque entre o privilégio das formas e a resistência material de seus conteúdos, há o princípio fundamental de que ambos têm uma história e esta tende à universalização. A lei não é apenas forma e conteúdo, caso e regra. Quando assimilamos leis particulares, da família ou do Estado, da República ou do Império, estamos assumindo a praticando a relação entre formas e conteúdos no quadro de um universal maior: a linguagem, a razão, a lógica ou a natureza. Por exemplo, aprender a falar uma língua particular, português, russo ou armênio, é simultaneamente assimilar uma cultura e acessar a lei geral da linguagem. A universalidade da lei não é apenas a ampliação de sua aplicação, nem apenas a reforma que integra suas exceções. Há também os momentos de ruptura, nos quais se cria ou se evidencia uma nova “regra do jogo”, uma “nova razão”. Era o que se esperava da presidenta, um novo pacto social, reformas econômicas, políticas e uma mudança estrutural da esfera pública. Isso não realizado surgiu o fracasso do fracasso, ou seja, o “bom senso” de que nada seria pior do que Dilma. O conteúdo submetendo a forma, a sentença submetendo o processo, a certeza submetendo as evidências do processo. A defesa, dizem os especialistas foi ruim porque ela se ateve ao particular da acusação não percebendo que se tratava de um julgamento global, pelo conjunto da obra. Um julgamento pelo que é e não pelo que se fez.
Aqui emergem duas patologias da relação com a lei. A primeira afirma que a lei depende do caso, da circunstância, dos interesses particulares, da conotação política do julgamento. Vingança contra a corrupção por meio da qual políticos empreitam a coisa pública com auxílio da iniciativa privada. Juízo negativo que afirma apenas: isso, não! Direito dos povos a repudiar seus tiranos sem saber o que virá no lugar. Lógica pragmática de condomínio que afirma: se não funciona, troca o síndico. Ocorre que neste caso sabíamos o que viria depois. Não se aplica a cláusula do tudo menos isso, mas a opção, em vez disso, aquilo. Sem diferença entre critérios públicos, construídos por todos, e os interesses particulares, administrados por alguns. Isso me permite eleger quem foram estes que elegeram Michel Temer. E acusá-los, um a um, de crime de responsabilidade.
Aqui vem a segunda patologia da lei, representada pela emergência de formas vazias, manipuláveis, na qual o conteúdo e o mérito dobram-se à correção formal do processo. A justiça se reduz ao direito, e o direito aos seus executores. Um ato imoral torna-se legal, de tal modo que o caso anterior de corrupção fora da lei, inverte-se para a aceitação da corrupção dentro da lei. A certeza de que não há nada pior do que Dilma, e isso justifica Temer. A operação é feita com “mãos limpas” porque ninguém estava apoiando Temer, apenas negando Dilma. Ainda que todos soubessem das consequências, por meio desta mágica é possível desejar os fins mas não prestar contas dos meios, admitir os meios mas se desresponsabilizar pelos fins. Onde estão os que queriam a limpeza do país e diziam que Dilma era a primeira e depois viriam os outros? Onde estão os covardes que se escondem atrás da patologia da lei? Os que se juntam no bom senso desaparecem na hora de assumir que quem quer fora Dilma, quer fora Temer. Caso contrário: golpe.
Um governo que age de forma desastrosa com a gestão de seus recursos, ainda assim não deveria ter sua legitimidade política destituída. Seu conteúdo democrático não é atacado pela inépcia econômica. Inversamente, a pessoa pode ser arrogante, desinteligente ou centralizadora, mas isso não afeta sua posição diante da forma da lei. Percebe-se como este excesso de responsabilidade inverte-se na absolvição do seu contrário: se Temer der errado, ninguém paga a conta. Não queríamos Temer, apenas desejávamos não-Dilma. Como se diz no linguajar da economia neoliberal: free lunch [almoço grátis].
A diferença para Collor é que em Dilma falta um Fiat Elba, um mísero Fiat Elba que possibilite dizer: aqui está o crime. Aqui o bom senso dirá: ela pessoalmente não parece corrupta, talvez leniente. Os peritos dirão: o dinheiro público não foi destinado ao enriquecimento pessoal, mas para manter o país funcionando na saúde, educação e em suas demais funções vitais. Os próprios juízes admitem a vacilação de seu gesto por meio de uma sintomática divisão: cassada, mas com direitos políticos preservados. Ela torna-se culpada por cercar-se de amigos suspeitos, por ter um passado duvidoso, por pertencer a um partido incapaz de autocrítica. Por levar o país a bancarrota. Tudo verdade. Mas será a verdade tão maior que a justiça?
O impeachment da presidenta Dilma conseguiu reunir as duas patologias da lei. Justiça com as próprias mãos e higienização de seus executores. O truque consistiu em uma inversão radical entre o formalismo normativo e a intolerância moral com o conteúdo. Primeiro há o consenso massivo em torno do excesso de conteúdo: o poder pessoal e direto de grandes empresários julgados sem morosidade. Isso aguça o desejo e a indignação por mais forma da lei. Tem início o processo, por meio de um exagero máximo da manipulação das formalidades legais, levada a cabo por Eduardo Cunha. Isenta ou duvidosa como são todas as formas da lei, durante o julgamento produz-se a virada para argumentos de conteúdo. A prova mais simples desta sequência reside na universalização de seu princípio. Temer, Cunha e todos os outros sairão em fila e ordenadamente, com apoio popular nas ruas, com a colaboração continuada e responsável da imprensa, de sindicatos e empresários. Se esta é a boa lei ela reunirá esquerda e direita em um novo pacto social. Mas porque então não estamos todos juntos em uma nova rodada de Fora Temer, pelo progresso e radicalização da nova regra criada? Porque os outros 16 governadores pedaleiros não estão em pré-impeachment. Onde está a ira que aspirava generaliza-se em uma reforma do país? Um esforço a mais e queremos ser realmente republicanos.
Mas se esta for apenas uma justiça de exceção, na qual a forma da lei é usada para encobrir seu conteúdo obsceno teremos efeitos de outra ordem. Resultado primeiro: em vez de um novo pacto social, estaremos diante de uma nova lei soberana, na qual nossa aspiração de universalidade foi substituída e sancionada pelo uso coordenado de uma perversão da forma e pelo fetiche do conteúdo da lei. Resultado segundo: estabeleceremos que a regra da eleição geral é menos conveniente do que o arranjo interno, baseado na eficácia da lei, não na justiça da lei. Resultado terceiro: a história de nossos desejos e de nossas leis entrará em um hiato em nome do qual qualquer um poderá chantagear as pessoas com uma nova lei mais conveniente, mais útil, mais vingativa, mais particular em sua forma e em seu conteúdo.
*Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015)
Foto: José Cruz/Agência Brasil