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Esvaziada de conteúdo, a sessão de ontem mais pareceu um show de horrores em que só não foi convidado o tal crime de responsabilidade. Talvez fosse cedo demais para uma percepção deste porte ainda nos setecentos, mas hoje Dr. Samuel Johnson diria que o moralismo hipócrita – que abraça pátria, Deus e família – é o último refúgio dos canalhas. A história não os absolverá
Por Murilo Cleto
Ainda era o século XVIII quando Dr. Samuel Johnson alertou: “O patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. E poucos eventos corroboram esta linha com tanta precisão no tempo presente quanto o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que ontem andou mais um passo rumo à sua consolidação.
Durante os trabalhos da comissão, deputados enrolados em bandeiras nacionais insistiam que tratava-se de um processo do Brasil contra uma facção. Os grandes jornais compraram o discurso. Ao repercutir as manifestações de março pró e contra impedimento, O Globo foi emblemático: “Brasil vai às ruas contra Lula e Dilma e a favor de Moro”, no primeiro caso. No segundo, “Aliados de Dilma e Lula fazem manifestações em todos os estados”.
O mantra discursivo não é, evidentemente, por acaso. Ao proclamar o Brasil contra o PT, oposição e meios de comunicação cumprem dois objetivos complementares. Primeiro, jogam a turma a favor do impeachment para o campo da neutralidade objetiva, desprovida de interesses particulares. Quer dizer, esse é o Brasil. Ponto fora da curva é quem, neste momento, é outra coisa além do Brasil e, portanto, a favor do PT. Pode ter parecido confusão, mas é proposital a insistência em dizer que contrários ao impeachment são a favor do governo, ainda que a lógica esteja muito distante disso. E, segundo, tratam a cassação do mandato de Dilma com a inevitabilidade própria de um jogo de forças em que o lado certo veste o verde e amarelo.
Na verdade, quando se diz que é o Brasil quem está contra o PT, a oposição sequer se admite como um lado, mas se vende como o único. Nada muito diferente do que se vê quando o assunto é a tão alardeada “ideologia”, que quase todo mundo repete sem ter a vaga ideia do que efetivamente significa. No Brasil do século XXI, saudoso a seu modo do macarthismo, a esquerda é uma ideologia – e, portanto, uma construção doutrinária de subversão. Mas a direita, não. É neutra e objetiva como um cientista exato.
E é neste campo que se deu a batalha pelo impeachment. Pedaladas fiscais e créditos suplementares, efetivamente os dois únicos motivos de investigação admitidos pela mesa diretora da Câmara, foram meros coadjuvantes o tempo todo. Durante os trabalhos da comissão, se falou de tudo. Tudo mesmo, menos pedaladas e créditos. E não é por acaso: fosse isto, o impedimento não se sustentaria. Num dos episódios mais tragicômicos, o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) recuperou Gramsci para dizer que o PT lutava por uma “hegemonia cultural” em favor da “doutrinação de gênero” da Escola de Frankfurt.
Mas ontem, ampliado, o refúgio dos canalhas tornou-se um reality show de dar inveja a qualquer franquia internacional. No Congresso quase lotado, deputados acotovelavam-se perto do microfone para pressionar colegas e exibir seu orgulho patriótico que, no fim das contas, tem muito pouco a dizer além de confirmar o que disse Johnson há três séculos.
Somado ao patriotismo, o moralismo religioso também se fez mais presente do que nunca. Em nome de Deus, da pátria e da família – qualquer semelhança talvez não seja mera coincidência –, deputados oposicionistas votavam, um a um, a favor do impeachment. Éder Mauro (PSD-PA) dedicou o voto ao filho de 4 anos, dizendo que votava contra os “bandidos” que queriam destruir o país com a “proposta de que criança troque de sexo e aprenda sexo na escola com 6 anos de idade”.
Ao todo, 17 dos 23 deputados implicados na Lava Jato votaram pelo impeachment. Diante do risco de escárnio, destoaram dos demais, que votaram “contra a corrupção” – ainda que a presidenta não esteja implicada em caso algum e o processo não seja sobre isso –, acabaram dedicando o voto à família. Aliás, o que não faltou foi voto para mãe, pai, esposa, maridos e filhos. Marcelo Álvaro Antônio (PR-MG) invadiu a vez de Mário Heringer (PDT-MG) para voltar ao microfone e “corrigir uma situação”: tinha se esquecido de mandar um beijo para o filho Paulo Henrique. Sérgio Moraes (PTB-RS) deu feliz aniversário para a neta Ana.
Isso tudo, claro, sem contar o discurso fascista de Jair Bolsonaro, que em menos de um minuto conseguiu a façanha de homenagear um corrupto, Eduardo Cunha, e um torturador, o coronel Ustra, celebrando outra etapa de uma vitória que, segundo ele, começou em 1964. Votou "pela inocência e pela inocência das crianças em sala de aula". E foi ovacionado por uma multidão em frente à Fiesp.
Esvaziada de conteúdo, a sessão de ontem mais pareceu um show de horrores em que só não foi convidado o tal crime de responsabilidade. Talvez fosse cedo demais para uma percepção deste porte ainda nos setecentos, mas hoje Johnson diria que o moralismo hipócrita – que abraça Deus, pátria e família – é o último refúgio dos canalhas. A história não os absolverá.
Foto de capa: Arnaldo Saldanha