por Lindbergh Farias
O neoliberalismo começou a ser derrotado. A notícia parece auspiciosa, mas é tenebrosa. O sujeito histórico da derrota dos neoliberais não tem sido a esquerda socialista e democrática, mas várias aproximações do fascismo. Marx e Engels já escreveram no “Manifesto” de 1848 que o desfecho de nossa luta é aberto, tanto poder ser socialismo como barbárie. Rosa Luxemburgo repetiu a questão em forma de pergunta na hora grave em que a social-democracia alemã cedeu à pressão nacionalista e votou no parlamento os créditos de guerra.
De fato, o mundo já vive a experiência da barbárie cotidiana. A questão posta é que a barbárie, além de se expandir, pode se generalizar e aniquilar por muito tempo as promessas realmente existentes de emancipação. A hora é grave e a esquerda precisa estar à altura dos acontecimentos.
A vitória de Donald Trump na semana passada (e outros acontecimentos recentes, como o Brexit no Reino Unido) expressa uma espécie de nova hora do mundo. Descontadas as devidas proporções, de alguma maneira imergimos em uma fase histórica parecida com o período entreguerras (1919-1939), de crescimento do nacionalismo de direita e crise do Estado e da ideologia liberal. Contudo, cumpre lembrar como lição que a esquerda também foi derrotada naquele processo - uma verdadeira tragédia histórica - e só pôde voltar a respirar finda a Segunda Guerra Mundial (1945), e sob o terrível legado de 40 milhões de mortos.
Antes como hoje, enquanto o centro neoliberal cosmopolita sucumbe, paralelamente a esquerda não consegue polarizar a altura com a nova direita. Muitas vezes, como no caso do Brexit, a posição política é tímida e acuada.
Neste evento, a esquerda se dividiu. No entanto, a posição majoritária votou pela permanência do Reino Unido na União Européia em nome de valores abstratos da unidade dos povos da Europa. Muito bonito, mas realidade inexistente no mundo dos vivos. Ela não fez uma critica à altura da UE da Troika, dos burocratas de Bruxelas e da hegemonia do capitalismo financeiro, que passa por cima da soberania popular dos países. Faltou uma posição assertiva, um rumo claro, uma explicita diferenciação prática e programática, exatamente o quê - para fins de barbárie - vem sobrando às forças de direita.
Depois do Reino Unido, nos Estados Unidos um demagogo como Trump venceu entre os trabalhadores, a ponto de o cineasta Michael Moore ter chamado esta vitória de “o Brexit do cinturão industrial americano”. Os votos dos trabalhadores nunca foram monopólio de ninguém, visto que a consciência da classe está sempre em disputa. Neste aspecto, é insuficiente apenas fazer uma crítica fria.
Nunca foi fácil para a esquerda, ontem nem hoje. Mais que simplesmente repetir as sentenças do senso comum dominante, nossa tarefa é mais complexa e difícil que a direita - em vez de verbalizar preconceitos, precisamos, ao contrário, construir um novo senso comum.
É preciso olhar no olho da tragédia. Fracassou retumbantemente a política de conciliação de classes.
Os acontecimento do hoje têm um significado terrível. Desbotou de qualquer identidade programática com o mundo do trabalho setores que, antes, construíram o Estado do bem-estar social. Em nome do “realismo” e da “governabilidade”, de fato aderiram ao neoliberalismo e à defesa dos interesses da plutocracia rentista mundial.
Assim, a gerência do capitalismo se transformou no programa real executado pela maioria da esquerda, rebaixando o horizonte de expectativas. Deixamos de nos diferenciar. Sem dúvida, antes que teorias da conspiração germinem, há questões objetivas. Nos tempos de hegemonia do capitalismo financeiro, a margem de manobra da parte dos governos de esquerda é muito menor que no passado.
Aqui no Brasil, no essencial, os governos do PT e da esquerda impulsionaram uma estratégia de "reformismo fraco” (a expressão é de André Singer). Por alguns anos, deu certo. Enquanto houve a possibilidade, excepcional e situada, do “ganha-ganha” entre capital e trabalho, mediado pelo Estado, o barco seguiu singrando. Mas logo sobreveio a crise.
Nunca esqueçamos, é verdade, com todos os erros (principalmente a desastrosa política econômica do segundo mandato), que o governo Dilma caiu por suas virtudes. Mas faltou vontade política em encaminhar um programa de reformas estruturais. Esquecemos de fazer reformas de verdade em nome da gestão de um compromisso policlassista que foi eterno enquanto durou.
O passado recente está morto. É chegada a hora de abrir um novo ciclo, e no ciclo, uma guinada. De surgir uma esquerda com mais nitidez programática, que fale mais de socialismo. Que seja social e de massas, mas pense mais em termos de economia política, de Estado e de estratégia. As pautas identitárias são importantíssimas, apontam para o futuro, mas insuficientes em termos de projeto de poder. Neste sentido, há de se ter discurso e soluções sobre a distribuição de renda, o emprego e a afluência social dos mais pobres.
Alguns esforços plurais de construções novas, a despeito das dificuldades, vêm conseguindo colher alguns frutos. Citamos os exemplos do Podemos e Esquerda Unida (Espanha), da Frente de Esquerda, dirigida por Jean-Luc Mélenchon (França), do Bloco de Esquerda (Portugal), ou mesmo as tentativas de lideranças como Jeremy Corbyn em renovar as práticas do Partido Trabalhista (Inglaterra). Tudo ainda muito modesto, mas alvissareiro. O tempo não espera por nós, por isso torna-se urgente a velocidade nas novas articulações.
Abjuramos, é claro, os valores da direita, totalmente antípodas aos nossos. No entanto há de se perceber que a nova direita tem sido afirmativa em todos os recantos do globo. No passado, o partido fascista italiano, para se tornar de massas, mimetizou as formas de organização e agitação e propaganda dos socialistas e comunistas. Parecem abduzir como caricatura a nossa combatividade.
No caso das eleições americanas, justiça se faça ao programa com o qual Bernie Sanders buscou interpelar a sociedade, ao ser porta-voz de uma mensagem sem contemporizações contra o capital financeiro e a economia política da especulação dos magnatas de Wall Street. A pirâmide social estacionou nos Estados Unidos desde a década de 1980, exatamente os anos de vigência do neoliberalismo. O Senador trabalhou este fato com uma plataforma radical, que mobilizou jovens universitários e intelectuais, mas também trabalhadores brancos - estes últimos pertencentes à mesma classe que virou, pela direita, eleitora de Trump. Por isso, muitos analistas começam a dizer que fosse ele e não Hillary o candidato, talvez o resultado fo sse outro.
O velho senador progressista por Vermont propôs um programa corajoso. De alguma maneira, ele percebeu a novidade - muito clara também no Brasil a partir das mobilizações de junho de 2013 - que está ocorrendo um deslizamento objetivo, nos Estados Unidos e no mundo, para os extremos do espectro político, o que requer o ativismo de uma força política de esquerda radical e democrática subjetivamente organizada. Existe ainda um centro democrático, mas ele vem perdendo a capacidade de polarizar. Se a esquerda não ocupar o seu espaço histórico, poderá sobrevir uma tragédia semelhante à dos socialistas e comunistas por ocasião da derrota do período entreguerras (1919-1939).
Se o rentismo e o financismo são uma praga nos Estados Unidos, imaginem no Brasil. No entanto, nenhuma força política no Brasil de hoje (repito: nenhuma) partiu para ganhar as ruas com uma plataforma radical e democrática no patamar da contundência do discurso de Sanders. É um caso para refletir.
É preciso reter a lição da história, saber da imensa responsabilidade que pesa sobre os nossos ombros: a nova direita de massas só será derrotada por uma esquerda de verdade, de massas e programaticamente radical. Ou por mais ninguém.
Lindbergh Farias - Senador PT-RJ
Reprodução do Jornal GGN
Montagem: Jornal GGN