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Um governo que perde laços de identidade com as classes e agrupamentos que lhe deram origem, passando a depender de deslocamentos no campo adversário para sobreviver, está condenado à paralisia e ao esvaziamento
Por Breno Altman, no Opera Mundi
Há 24 anos, quando amanhecia o dia 19 de agosto, a União Soviética despertava em emergência: um golpe palaciano derrubava Mikhail Gorbatchev, então secretário-geral do Partido Comunista e chefe de Estado.
Os golpistas, descontentes com o desmonte do sistema socialista, encarceraram o dirigente deposto em uma dacha na Criméia e tentaram tomar o controle do país. Mas fracassaram depois de dois dias. Incapazes de mobilizar solidariedade popular e internacionalmente isolados, terminaram varridos pelas forças lideradas por Boris Yeltsin, principal expoente do movimento de restauração capitalista e presidente da Rússia, então a principal das repúblicas que compunham o condomínio de nações fundado por Lênin. Gorbatchev foi reempossado na Presidência, com o pescoço salvo por tanques e militantes que obedeciam ordens de seu antagonista desde os anos 1980. O poder que tinha em mãos, no entanto, estava praticamente reduzido ao de um figurante, a quem caberia assinar atos e decretos que, entre outros feitos, levariam seu partido à ilegalidade e a União Soviética à dissolução. Não representava mais os interesses de nenhum setor estratégico ou fração social relevante, apenas seis anos depois de assumir o comando do país sob aplausos entusiasmados e esperanças de renovação. Os defensores do socialismo e da sobrevivência soviética o tinham como um personagem capitulado à pressão ocidental, depois de seguidas concessões ao cerco anticomunista. O bloco favorável à superação definitiva do regime bolchevique, por sua vez, via Gorbatchev como obstáculo às contrarreformas mais radicais ou como sendo incapaz de levá-las a bom termo. Na lógica da restauração, no entanto, lhe restava um papel a cumprir, antes de sair da história para entrar na vida. Durante os quatro meses que ainda governou depois do golpe de agosto, até que fosse definitivamente retirada do mastro a bandeira vermelha, em 25 de dezembro, o último presidente da URSS representou a transição institucional entre dois regimes. Este caminho era necessário, nos cálculos dos restauracionistas, para aplacar novos conflitos e dar tempo à aliança conduzida por Yeltsin de fechar acordos destinados a impor sua hegemonia. O que veio depois está fartamente relatado em livros e estudos. Nunca é demais ressaltar que paralelos com a situação brasileira, no que diz respeito às condições concretas, não passariam de alucinação. Mas vale a pena extrair, dos eventos narrados, fenômeno político que atravessa distintos cenários e épocas: um governo que perde laços de identidade com as classes e agrupamentos que lhe deram origem, passando a depender de deslocamentos no campo adversário para sobreviver, está condenado à paralisia e ao esvaziamento. Sua queda ou continuidade passam a estar condicionadas principalmente por interesses de inimigos e aliados, pois dificilmente conta com forças próprias para decidir a seu favor ou influenciar de forma determinante qualquer disputa. O desespero pela sobrevivência, a mais perversa armadilha das relações políticas, costuma deslocar o eixo gravitacional das vítimas dessa síndrome para programas pertencentes a blocos político-ideológicos que lhes são estranhos ou antípodas. Sem agenda própria ou capacidade de iniciativa, administrações atoladas nesta situação podem sobreviver por certo tempo, mas geralmente acabam consumidas por decisões erráticas, recuos desordenados e hesitações incuráveis. Esta foi a sina de Gorbatchev, ainda que existissem outras alternativas. Com todas as ressalvas, talvez tenha serventia, no cenário brasileiro, refletir sobre a derradeira experiência soviética. No mínimo, para ajudar a entender os riscos que se corre quando um governo eventualmente abre mão ou não é mais capaz de exercer na plenitude sua função soberana sobre a política, a economia e a sociedade. Fotomontagem: Opera Mundi