Em sua coluna na Folha de S. Paulo, filósofo contesta "indignação moral seletiva" da mídia tradicional brasileira: "Pergunte-se quantas vezes você leu algum artigo sobre o histórico completo do senhor Cunha", questiona
Por Redação
Em artigo publicado em sua coluna semanal na Folha de S. Paulo, o filósofo Vladimir Safatle comentou os últimos acontecimentos envolvendo o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Para o professor da Universidade de São Paulo (USP), o deputado é poupado pela mídia tradicional pelo simples fato de contestar o governo de Dilma Rousseff. "Infelizmente, atualmente, basta o distinto deputado ser antigovernista para ser poupado por certo setor da imprensa nacional com sua indignação moral seletiva. Pois pergunte-se quantas vezes você leu algum artigo sobre o histórico completo do senhor Cunha", escreveu.
Confira o texto na íntegra:
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)O piromaníaco
Na semana passada, o país assistiu, estarrecido, o presidente da Câmara dos Deputados atacar os outros poderes da República por ter sido denunciado em casos de corrupção da Operação Lava Jato. Não, o senhor Cunha não procurou dar explicações a respeito das graves acusações encaminhadas pelo procurador-geral. Ele resolveu chantagear explicitamente o poder Executivo e acusar o Ministério Público de um complô contra a sua distinta pessoa.
Tratando o povo brasileiro como uma banca de idiotas, o senhor Cunha saiu-se com a história de uma ação conjunta entre o governo e o Judiciário para prejudicá-lo. Ou seja, o juiz Sergio Moro, o mesmo que denunciou membros do governo e parlamentares governistas, estaria agora agindo juntamente com o governo para derrubar Cunha. Esta é melhor do que aquela história do policial que, vendo um morto cujo corpo estava dentro de um saco amarrado e a arma do lado de fora, afirmou que se tratava de suicídio.
Em qualquer outra situação, um deputado indiciado em um dos maiores escândalos de corrupção da história recente do país nunca poderia assumir o terceiro cargo da República. A razão para tanto foi mostrada na semana passada: ele fará tudo o que estiver a seu alcance para constranger as investigações, até mesmo tentar transformar seu problema pessoal em problema nacional. Afinal, o que poderíamos esperar de um senhor que era tesoureiro, no Rio de Janeiro, da campanha presidencial de Fernando Collor, que tinha relações orgânicas com PC Farias –chegando a ser réu em um dos maiores processos do esquema PC– além de acusado de vários casos de corrupção quando presidente da Telerj e da Cehab? Infelizmente, atualmente, basta o distinto deputado ser antigovernista para ser poupado por certo setor da imprensa nacional com sua indignação moral seletiva. Pois pergunte-se quantas vezes você leu algum artigo sobre o histórico completo do senhor Cunha.
O fato é que mal começou a legislatura e temos um Congresso com 10% de seus deputados investigados lutando desesperadamente para se salvarem. Ele mais parece um sindicato de indiciados por crime comandado por um indiciado por crime. É neste ambiente que o país viu feitos congressuais notáveis como o aumento do fundo partidário em plena situação de crise econômica, a votação de uma lei que desmantela por completo os direitos trabalhistas, deputados evangélicos votando a redução da maioridade penal e dando uma grande mostra de sua leitura peculiar de amor cristão, além da criação de uma reforma política que visa garantir as condições para a perpetuação da casta de políticos que temos. Tudo isto capitaneado pelo senhor Cunha. O Brasil agradece por seus feitos notáveis.