Que fim levaram os líderes latino-americanos dos anos 1990?

Daqui a dez anos se poderá avaliar o destino dos atuais presidentes, mas provavelmente entrarão para a história melhor que antecessores.

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Daqui a dez anos se poderá avaliar o destino dos atuais presidentes, mas provavelmente entrarão para a história melhor que antecessores Por Wagner Iglecias, do Opera Mundi A  história da América Latina no século XX pode ser dividida, grosso modo, em décadas. Nos anos 1960 e 1970, por exemplo, o continente esteve imerso na lógica da Guerra Fria. Se, do lado de lá, na Cortina de Ferro, Moscou exercia fortíssima influência países como Hungria, Polônia, Alemanha Oriental e Tchecoslováquia, do lado de cá, no “pateo trasero” dos EUA, Washington tinha grande peso sobre nações como Argentina, Brasil e Chile, que viviam sob ditaduras militares, ou México, Colômbia e Venezuela, que formalmente eram democracias. Nos anos 1970, aliás, vários países latino-americanos experimentaram altos índices de crescimento, por conta da tomada de dinheiro barato nos mercados mundiais. Mas a festa acabou quando Ronald Reagan chegou ao poder nos EUA e o Fed subiu as taxas de juros para os títulos do Tesouro norte-americano. Ali, se enxugou a liquidez mundial e quebrou-se muitos países endividados, como os da nossa região. A década de 1980 foi de desmanche das ditaduras, que perdiam apoio à medida que o fracasso econômico se acentuava. E foi também uma década de reconstrução das instituições democráticas e de gerenciamento da massa falida. José Sarney, no Brasil, e Raúl Alfonsin, na Argentina, foram dois claros exemplos de presidentes que tiveram de lidar com o duplo desafio de reconstruir a democracia e recolocar a economia nos eixos. Miguel de La Madrid, no México, também, ao menos no caso da economia. Num certo sentido foram todos eles líderes melancólicos, de uma época onde havia poucos motivos para se comemorar alguma coisa. Arrebatadores mesmo foram os líderes que chegaram ao poder nos anos 1990. A onda ideológica neoliberal varria a periferia do mundo e a América Latina não ficou imune a ela. Pelo contrário, foi onde mais se aprofundou as experiências de privatização de empresas estatais, abertura comercial rápida e profunda e desregulamentação da economia. Tudo visando criar bons ambientes de negócio para investidores internacionais. Foi naquela época que gente como Carlos Menem (Argentina), Carlos Salinas de Gortari (México), Gonzalo Sanchez de Lozada (Bolívia), Alberto Fujimori (Peru), Carlos Andrés Pérez (Venezuela) e Fernando Henrique Cardoso (Brasil) elegeram-se a partir do sonho de retomada do crescimento e da equiparação das nossas sociedades com os padrões de vida do mundo desenvolvido. Doce ilusão. O sucesso das medidas neoliberais da década de 1990 duraram isso mesmo, uma década. As medidas implantadas debelavam a inflação e atraíam capitais, de fato. Mas também produziram quebradeira de empresas, desemprego, recessão e em alguns casos reprimarização de nossas economias. Aprofundou-se o grau de dependência em relação aos países centrais. E a pobreza e a desigualdade aumentaram naquela década. Finalmente em 1998 Hugo Chávez foi eleito presidente na Venezuela e abriu a temporada de desmonte da grande frente neoliberal que comandava a América Latina até ali. Depois dele, diversos partidos de esquerda, em seus mais variados matizes, ganharam eleições e chegaram ao poder em Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Equador. E mais recentemente na Nicarágua, El Salvador e Costa Rica. [caption id="attachment_56207" align="aligncenter" width="660"]opera2 Reunião do Mercosul em 2012 com Chávez, Dilma, Mujica e Cristina (Foto: Wikicommons)[/caption] Mas por onde andariam, hoje, aqueles senhores que foram os ícones do sonho neoliberal que campeou na América Latina há quinze, vinte anos atrás? Aqueles que por um instante deram a impressão, a seus povos, de que Francis Fukuyama estava certo e de que, a partir da primazia da economia de mercado e da democracia liberal, havíamos finalmente chegado ao “Fim da História”? Carlos Menem, que governou a Argentina entre 1989 e 1999, teve altos índices de popularidade enquanto conseguiu manter a paridade do peso com o dólar. Aproveitou-se dela para alterar a Constituição e concorrer à sua própria sucessão, algo proibido até então em seu país. Chegou a desdenhar do Mercosul e dizer que seu país gostaria de ter uma relação carnal com os EUA. No entanto encerrou seu governo de forma deprimente, com a Argentina mergulhada numa profunda crise econômica que acarretou sérias consequências políticas. Outros dois dados de sua biografia política foram a anistia aos generais da ditadura (1976-1982) e a prisão por conta de acusação de tráfico internacional de armas. Tentou concorrer novamente à presidência em 2003, contra Néstor Kirchner, mas acabou desistindo da eleição por considerar que a vantagem obtida pelo adversário no 1º turno seria insuperável no turno final. Algum tempo mais tarde aliou-se a Cristina Kirchner e em 2011 foi eleito senador. Ano passado foi condenado pela Justiça argentina a sete anos de prisão por seu envolvimento no caso do tráfico de armas, mas conta com imunidade parlamentar e segue em liberdade. Carlos Andrés Pérez, homem forte da Venezuela entre 1989 e 1993, havia sido presidente daquele país na década de 1970. Na época fez um governo nacional-desenvolvimentista, criando inclusive a PDVSA, a Petrobrás venezuelana. Reelegeu-se presidente no fim dos anos 1980 com um discurso voltado ao social mas assim que tomou posse abraçou a agenda do FMI (Fundo Monetário Internacional). Sua guinada à direita, com um pacote de medidas econômicas altamente impopulares, originou o Caracazo, em fevereiro de 1989. Evento traumático da história venezuelana, no qual milhares de manifestantes foram massacrados por forças oficiais. Em 1993 Andrés Pérez acabou sofrendo processo de impeachment por corrupção. Ainda elegeu-se senador no fim daquela década, e depois autoexilou-se na República Dominicana e na sequência em Miami, onde veio a falecer em 2010. Gonzalo Sanchez de Lozada, o Goni, governou a Bolívia entre 1993 e 1997. Chegou ao poder aliado a pequenos grupos de esquerda e movimentos indigenistas. No entanto, implantou um duríssimo plano de ajuste econômico destinado a acabar com a hiperinflação e privatizou diversas empresas públicas. As consequências sobre as condições de vida dos mais pobres foram terríveis. Conseguiu ainda voltar ao poder entre agosto de 2002 e outubro de 2003, período em que propôs novo ajuste, com fortes perdas salariais aos trabalhadores, bem como o plano de exportação de gás boliviano aos EUA através de um porto no Chile. Acabou deposto por conta de imensa mobilização popular e fugiu para os EUA. Mora atualmente em Miami. Em 2012, Lozada sofreu pedido de extradição aos EUA feito pela Justiça boliviana, para que responda em seu país pelos atos de repressão que resultaram na morte de 60 pessoas na época de sua deposição. O pedido foi rejeitado por Washington, mas a Justiça boliviana reapresentou o pedido agora em 2014. Alberto Fujimori foi eleito presidente do Peru em 1990, e governou até 2000. Em 1992, apoiado pelas Forças Armadas, patrocinou uma espécie de autogolpe, fechando o Congresso, a Suprema Corte e o Ministério Público. Adotou todo o receituário neoliberal, desregulamentando a economia peruana radicalmente e criando condições para a atração de investimentos estrangeiros. No entanto, viu explodirem a inflação e o desemprego. Durante seu governo, promoveu uma intensa guerra contra os movimentos guerrilheiros de esquerda, com destaque para o desmantelamento do Sendero Luminoso. Em 2000, durante uma viagem oficial à Ásia, renunciou à presidência e pediu asilo político ao Japão, país onde muitos peruanos desconfiam que ele teria nascido. Acabou sendo condenado em 2009 pela Justiça peruana a 25 anos de prisão pelos crimes como enriquecimento ilícito, corrupção, evasão de divisas, sequestro e genocídio. Deixou o Japão e após breve refúgio no Chile, foi extraditado ao Peru, onde cumpre pena. Apesar da infraestrutura privilegiada de seu cárcere, Fujimori recentemente solicitou à Justiça do país o cumprimento do restante da pena em casa, alegando questões humanitárias. O pedido foi rejeitado. [caption id="attachment_56208" align="aligncenter" width="660"]opera3 Ex-presidente Alberto Fujimori durante audiência de julgamento em março deste ano (Foto: Agência Efe)[/caption] Carlos Salinas de Gortari chegou ao poder no México em 1989, após uma eleição marcada por denúncias de fraude e na qual ganhou por pequena margem de um adversário esquerdista. Implantou um radical programa de corte neoliberal, com destaque para a privatização de inúmeras empresas estatais, de setores variados como telefonia, bancos, telecomunicações, seguradoras, transporte aéreo e hotelaria. Foi de Salinas a iniciativa de procurar os EUA e o Canadá para a criação do NAFTA (Tratado de Livre Comércio da América do Norte), assinado em 1994. Suas medidas na economia deram ao México índices de crescimento que não se via há décadas, associados a uma queda radical da inflação. O país chegou inclusive a ser aceito na OCDE, clube dos países mais ricos do mundo à época, e era tratado como modelo pelo mainstream econômico mundial. No entanto, sua política cambial e sua política fiscal resultaram tão desastrosas que desorganizaram as contas públicas do país, a ponto de ocasionar a Crise Tequila. Ali o México faliu, dando o pontapé inicial a uma série de graves crises econômicas na segunda metade dos anos 1990, como no Leste Asiático, na Rússia, na Turquia e na Argentina, entre outros países. Um mês após encerrar seu mandato, e tendo Raul, seu irmão, preso por denúncias de corrupção, Salinas de Gortari deixou o México rumo aos EUA e algum tempo depois se soube que havia se autoexilado na Irlanda, país que não possuía tratado de extradição com o México. Em 2004 Enrique, outro irmão seu, foi encontrado morto em condições nunca totalmente esclarecidas. Retornou há alguns anos ao México e é aliado do atual presidente Peña Nieto, que reconduziu o Partido Revolucionário Institucional (PRI) ao poder após doze anos na oposição. Outros líderes políticos latino-americanos da década de 1990 também adotaram o receituário neoliberal e também fracassaram. É o caso, por exemplo, dos ex-presidentes Abdalá Bucaram, que governou o Equador entre 1996 e 1997, e Jamil Mahuad, que presidiu aquele país entre 1998 e 2000. Foi ele, Mahuad, que extinguiu o sucre, moeda nacional do Equador, e adotou o dólar como moeda oficial. Vive hoje exilado nos EUA, enquanto Bucaram está exilado no Panamá. Daqui a dez anos se poderá avaliar o destino político, pós-poder, dos atuais líderes latino-americanos. Hugo Chávez, ainda que contestado pelos setores médios e ricos da população de seu país, faleceu como um herói nacional na Venezuela. Cristina, por sua vez, também enfrenta oposição na sociedade argentina, mas Lula terminou seu mandato como o presidente mais popular da História do Brasil. Mujica em alguns dias deixará a presidência do Uruguai também com altos índices de aprovação, e Evo Morales e Rafael Correa são presidentes eleitos e reeleitos com grande popularidade na Bolívia e no Equador, respectivamente. Muito provavelmente todos eles entrarão para a História em páginas bem mais gloriosas que seus antecessores da década de 1990. Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP.