Desemprego, recessão, crise profunda da democracia. Um Nobel de Economia desmascara o falso êxito das políticas de “austeridade” – as mesmas que conservadores querem no governo Dilma
Por Joseph Stiglitz, tradução por Mariana Bercht Ruy, do Outras Palavras | Foto: Roberto Stuckert Filho/PR
“Se os fatos não se encaixam na teoria, mude a teoria”, diz o velho ditado. Mas muito comumente é mais fácil manter a teoria e mudar os fatos. É o que a chanceler alemã Angela Merkel e outros líderes europeus pró-austeridade parecem pensar. Mesmo com os fatos a um palmo do nariz, eles continuam negando a realidade.
A austeridade falhou. Mas seus defensores estão prontos a declarar vitória com base na evidência mais fraca de todas. A economia não está mais em colapso; logo, as medidas de austeridade só podem estar funcionando! Mas se essa for a referência, poderíamos dizer que pular de um penhasco é a melhor forma de descer uma montanha.
Toda crise chega a um fim. O sucesso não deve ser medido pelo fato de a recuperação em algum momento acontecer — mas pelo tempo que se demora para chegar a ela e por quão extensos são os danos causados pelo tombo. Vista nesses termos, a austeridade tem sido um desastre completo e absoluto. Isso está se tornando cada vez mais visível à medida em que as economias da União Europeia voltam a encarar estagnação — ou, talvez, um triplo mergulho em recessão, com o desemprego mantendo-se em altos patamares e o PIB real per capita ainda abaixo dos níveis pré-crise, em muitos países. Mesmo nas economias de melhor desempenho, como a Alemanha, o crescimento desde 2008 tem sido tão lento que, em qualquer outra circunstância, seria considerado desanimador.
Os países mais atingidos estão em depressão. Não existe outra palavra para descrever economias como a da Espanha ou da Grécia, onde quase uma em cada quatro pessoas – e mais de uma em cada duas, entre os jovens – não consegue encontrar trabalho. Dizer que o remédio está funcionando porque o índice de desemprego decresceu em alguns pontos percentuais, ou porque se pode ter um vislumbre de crescimento magro, é semelhante a um barbeiro medieval que diz que a sangria está funcionando, já que o paciente ainda não morreu.
Extrapolando o crescimento europeu modesto a partir dos anos 80, meus cálculos demonstram que a produção na zona do euro hoje está mais de 15% abaixo do ponto em que estaria, se a crise financeira de 2008 não tivesse acontecido. Isso implica uma perda de 1,6 trilhão de dólares apenas esse ano, e uma perda acumulada de mais de US$ 6,5 trilhões. Ainda mais perturbador é que essa diferença está aumentando e não diminuindo (como se esperaria depois de uma crise, quando o crescimento é tipicamente mais rápido do que normalmente conforme a economia retoma terreno perdido).
Em outras palavras, o longo período de recessão está diminuindo o crescimento potencial da Europa. Jovens que deveriam estar desenvolvendo habilidades não estão. Há evidências contundentes de seus rendimentos, ao longo da vidas, serão muito menores do que se vivessem num período de pleno emprego.
Enquanto isso, a Alemanha força outros países a seguir políticas que enfraquecem suas economias – e suas democracias. Quando os cidadãos votam repetidamente por uma mudança política (e poucas políticas importam mais aos cidadãos que aquelas que afetam seus padrões de vida), mas ficam sabendo que estes temas são decididos em outro lugar, e que, portanto, sua escolha é inútil, tanto a democracia quanto a fé no projeto europeu são corroídas.
A França votou para mudar de rumo três anos atrás. Em vez disso, os eleitores receberam outra dose de austeridade pró-corporações. Uma das propostas mais antigas na economia é o multiplicador do orçamento equilibrado. Significa que aumentar conjuntamente os impostos e as despesas estimula a economia. E se os impostos incidem sobre os ricos e as despesas beneficiam as maiorias, o multiplicador pode ser particularmente alto. Mas o dito governo socialista francês está reduzindo a tributação das empresas e cortando gastos – uma receita quase garantida para enfraquecer a economia, mas também para ganhar elogios da Alemanha…
A esperança, afirma-se, é que impostos mais baixos para pessoas jurídicas estimulem o investimento. Isso é pura bobagem. O que está reduzindo o investimento (tanto nos Estados Unidos como na Europa) é a ausência de demanda, não os impostos elevados. Na verdade, como a maior parte dos investimentos é financiada por dívidas, e como o pagamentos de juros é dedutível dos impostos, o nível de tributação das empresas tem pouco efeito na decisão de investir.
Da mesma forma, a Itália está sendo encorajada a acelerar a privatização. Mas o primeiro ministro Matteo Renzi tem o bom senso de reconhecer que vender empresas a preço de banana faz pouco sentido. Também as decisões do setor privado deveriam ser influenciadas por donsiderações de longo prazo, não por exigências financeiras de curto prazo. A decisão deveria ser baseada em onde essas atividades são realizadas de forma mais eficiente, servindo aos interesses da maioria dos cidadãos da melhor forma possível.
A privatização dos sistemas de Previdência, por exemplo, já provou ser dispendiosa naqueles países que a experimentaram. O sistema de saúde quase inteiramente privado norte-americano é o menos eficiente do mundo. Existem questões difíceis, mas é fácil demonstrar que vender empresas estatais por preços baixos não é uma boa forma de aumentar a força financeira a longo prazo.
Todo o sofrimento na Europa – infligido a serviço do euro – é ainda mais trágico por ser desnecessário. Apesar das evidências de que as medidas de austeridade não funcionam continuarem se acumulando, a Alemanha e outros falcões dobraram a aposta, apostando o futuro da Europa em uma teoria há muito desacreditada. Por que fornecer aos economistas mais fatos para provar isso?
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Um mito, acompanhado por uma fieira de jargões, espalha-se com rapidez no Brasil pós-eleições: o de que precisamos de um “ajuste fiscal”, de um “aperto de cintos”, para “recolocar ordem na economia”. Após um período de “descontrole” das contas públicas e “gastança”, os “agentes econômicos” (leia-se grandes bancos e empresas) teriam “perdido a confiança” no Estado e deixado de investir. Para seduzi-los novamente, seria preciso voltar às políticas mais ortodoxas. Elevação das taxas de juros. Corte de investimentos públicos. Contenção do salário-mínimo, da bolsa-família e de direitos previdenciários como o seguro-desemprego.
Repetido como mantra, esse discurso tem encontrado pouca resistência. Aécio Neves, que o sustentou durante a campanha eleitoral, foi derrotado pelos eleitores — num segundo turno em que Dilma investiu, para vencer, no tema de “Mais” mudanças e direitos. Porém, fechadas as urnas, foi como se elas nada tivessem dito. A mídia apresenta o “ajuste fiscal” como se não fosse uma opção política — mas uma necessidade objetiva e inescapável. A própria presidente reeleita pareceu abandonar, logo depois da vitória, seu discurso. Ainda em outubro, o Banco Central elevou as taxas de juros. Em 6 de novembro, ao conceder entrevista a oito veículos da velha mídia, Dilma anunciou corte de gastos. Um dia depois, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, revelou que o governo já os prepara.
Mas o “ajuste fiscal” é uma escolha tão óbvia, para os governantes, como mobilizar as equipes de Defesa Civil, em caso de tragédia? No texto a seguir, Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, demonstra que não. Ele examina o caso da Europa. Lá, com nome de “austeridade”, politicas de corte de direitos sociais e desmonte de serviços públicos estão sendo adotadas desde 2009. Cinco anos depois, os economistas conservadores veem sinais de “sucesso”. Stiglitz zomba. Todas as crises terminam um dia, ele lembra. Ao fazer o balanço, o que importa é aferir que sacrifícios foram exigidos, das sociedades, para enfrentá-las. Na Europa, o panorama é trágico. Além da corrosão dos direitos sociais, houve desgaste grave da democracia — desmoralizada quando os governos prometem “Mais” e entregam “mais do mesmo”. E não é só: voltam a surgir no horizonte sinais de que todo o sacrifício foi inútil. Mesmo países como a Alemanha parecem enfrentar, agora, estagnação — e contribuem para jogar lenha na fogueira de uma possível tempestade econômica mundial.
A redefinição da política econômica tornou-se um tema central. Árido aparentemente — porque interessa ao pensamento conservador reduzi-lo a algo para especialistas — ele pode ser compreendido por todos que se disponham a algum esforço. Vale a pena. Das escolhas que o Brasil fizer, neste terreno, dependerá, também, nosso futuro político, social e cultural. “Outras Palavras” insistirá no assunto. Vale, por enquanto, escutar Stiglitz. (por Antonio Martins, editor do Outras Palavras)