Sebastião Salgado – quem vê uma imagem sua nunca mais é o mesmo
Tente manter os olhos nos olhos da menina sem-terra fotografada por ele. Tente não retesar os músculos, tente se manter ileso
Quem para diante de uma das inúmeras imagens de Sebastião Salgado nunca mais é o mesmo. A não ser, é claro, que não tenha o menor apreço pela raça humana e pelo planeta que ela habita.
Há ali, é claro, o enquadramento perfeito, a composição definitiva. Há também a preferência por nos mostrar as coisas em preto e branco. Ele mesmo explicou a razão, em entrevista à RFI Brasil:
"Meu mundo é preto e branco, eu vejo em preto e branco, eu transformo todas essas gamas maravilhosas de cores – e eu acho a cor muito bonita – em gamas maravilhosas de cinza, o preto e branco é uma abstração, é uma forma que eu tenho de sair de um mundo e entrar em outro para poder trabalhar o meu sujeito fotográfico, poder dedicar tempo à dignidade das pessoas. Isso eu consigo em preto e branco, acho que em cores eu não conseguiria", disse ele.
Há inúmeras outras e enormes razões que fazem de Sebastião Salgado um gênio das imagens. Certo dia me arvorei pela fotografia e, diante de suas fotos, me senti um menino, estudante de ukulelê ouvindo Beethoven pela primeira vez. O que explode de suas texturas e visões vertiginosas é algo que parte de outra dimensão e nos coloca diante de nós mesmos, nosso papel no futuro.
Os olhos de aflição da menina sem-terra, retratada por ele no emblemático projeto Terra, nos sacode pelos ombros com força tamanha. É intimidante, seco, dorido. Ela encara o cidadão de bem no fundo da alma. Tente, caro, leitor, manter os olhos nos olhos da criança por mais tempo. Tente não retesar os músculos, tente se manter ileso.
Antes que os incautos digam algo que o desabone, é importante lembrar que Sebastião Salgado cedeu os direitos autorais do livro "Terra" ao MST. O projeto, lançado em 1997, e que integra textos do prêmio Nobel José Saramago, e um disco com canções do Prêmio Camões Chico Buarque, foi todo para o movimento.
Doenças da alma
A extensa obra de Sebastião Salgado é totalmente voltada a denunciar injustiças, devastações, fome. Enfim, todo o pesadelo e a desventura dos homens em sua incessante obsessão por destruir e espoliar sua própria casa e seus semelhantes.
Após décadas, possuído por doenças da alma, o fotógrafo resolveu ir atrás do que restava do planeta e de seus habitantes. Fez, então, seu canto do cisne: a obra-prima “Gênesis”, iniciada em 2004, concluída em 2012 e publicada em 2013.
Nela, o fotógrafo registrou lugares e povos que ainda estavam intocados. E, para sua surpresa e otimismo, o que encontrou era muito maior do que jamais imaginou um dia.
Sebastião Salgado nos deixou nesta sexta-feira, 23 de maio de 2025, aos 81 anos, com uma obra imensa, irretocável. Foi, sem sombra de dúvidas, o maior fotógrafo brasileiro de todos os tempos e um dos grandes do planeta.
Que a sua inquietação e genialidade nos inspire a reconstruir nossa casa e nosso tempo.