Bebê Reborn, Esposa-Troféu e o Louvor da Misoginia Digital - Por Thaís Cremasco
Pode parecer só uma tendência, mas não é. É política — e das mais perversas. Trata-se de uma operação simbólica cuidadosamente calculada para reempacotar a misoginia em papel de presente: estético, fofo e vendável.
Nas redes sociais, um novo tipo de opressão ganha curtidas, contratos publicitários e status de lifestyle: a romantização da fragilidade feminina. De um lado, vemos mulheres adultas embalando bonecas hiper-realistas — os chamados “bebês reborn” — como se fossem mães. Do outro, uma enxurrada de vídeos exaltando a “esposa-troféu”: bela, magra, submissa, grata. E no pano de fundo, uma trilha sonora de louvores e discursos religiosos que dizem: mulher boa é mulher doce, que obedece.
Pode parecer só uma tendência, mas não é. É política — e das mais perversas. Trata-se de uma operação simbólica cuidadosamente calculada para reempacotar a misoginia em papel de presente: estético, fofo e vendável.
O mercado de bebês reborn até movimenta cifras — mas está longe de ser um fenômeno econômico relevante o suficiente para ocupar o topo das tendências digitais. Ainda assim, virou pauta quente nas redes, enquanto uma realidade muito mais urgente segue invisibilizada: no Brasil, mais de 47% das famílias são chefiadas por mulheres, muitas delas mães solo, que enfrentam jornadas exaustivas, salários desiguais e zero suporte do Estado. Essas mulheres não viralizam. Não aparecem embalando bonecas com músicas suaves ao fundo. Elas não cabem na estética da fragilidade encenada — porque estão ocupadas demais sustentando este país com trabalho não reconhecido, não remunerado e não romantizado.
A fetichização da fragilidade feminina interessa a um sistema que lucra com a submissão. Quanto mais passiva a mulher parecer, mais fácil será controlá-la, vender para ela, silenciá-la. E a internet virou o palco ideal para isso.
Nas redes, a figura da “esposa-troféu” é vendida como uma escolha empoderada. Mas na prática, ela reforça a ideia de que a mulher ideal é dócil, silenciosa e dependente. E há um algoritmo inteiro trabalhando para manter essa imagem no topo dos feeds. Afinal, ela vende: vende maquiagem, marmita fit, curso de obediência bíblica, cirurgia plástica e reforçando os alicérces do patriarcado.
Enquanto isso, o Brasil amarga uma das maiores taxas de feminicídio do mundo. E os homens que exaltam a “mulher de verdade” como aquela que não questiona, são os mesmos que se calam diante das que morrem todos os dias.
Muitos desses conteúdos vêm revestidos de discurso religioso. É o “Deus quer que você seja submissa”, o “mulher sábia edifica o lar”, o “feminismo é do diabo”. O que parece louvor é, muitas vezes estratégia de dominação. É a religião entrelaçada com o algoritmo sendo usada como ferramenta de controle. O resultado? Uma fé que protege a violência e condena a liberdade.
O discurso de ódio contra mulheres não é mais só grito na rua ou tapa no rosto. Ele é algoritmo, impulsionamento, monetização. Ele vem com filtro, luz boa e voz doce. É a opressão gourmet: vendida como escolha, tratada como glamour. Mas segue sendo violência — e talvez até mais eficaz por parecer inofensiva.
Toda vez que uma mulher é reduzida a um objeto decorativo, um ventre ou uma “ajudadora”, alguém está lucrando — seja financeiramente ou simbolicamente. E quem perde somos nós: mulheres complexas, plurais, exaustas, que seguem sustentando este mundo.
É hora de desmontar essa encenação. A verdadeira revolução começa quando uma mulher entende que ela não foi feita para agradar, mas para existir — inteira, real e livre.