OPINIÃO

Francisco e o trabalho que dignifica: uma homenagem ao Papa operário – Por Álvaro Quintão

Uma homenagem ao Papa Francisco, cuja voz ensinou que a dignidade humana começa no trabalho justo e termina na esperança compartilhada

O Papa Francisco.Créditos: Giuseppe Ciccia/Brazil Photo Press/Folhapress
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Na despedida de Francisco, não são apenas os sinos de Roma que dobram. Uma quietude diferente paira sobre praças, igrejas e fábricas. O silêncio pede palavras que recuperem o significado de uma vida dedicada à dignidade humana. Entre suas incontáveis falas, ecoa mais forte uma verdade simples e profunda: "É o trabalho que unge de dignidade". Nessas palavras, Francisco sintetizou uma doutrina social que buscou amparar o ser humano contra as brutalidades do mercado e da injustiça.

Francisco, desde o início de seu pontificado, mostrou-se menos chefe religioso e mais companheiro de jornada. Preferiu a periferia à pompa, as fábricas aos palácios. Era como se a própria vida fosse um grande ofício, executado com paciência e obstinação. Em suas homilias e pronunciamentos, o trabalho deixou de ser apenas meio de sustento e tornou-se a medida da dignidade humana, um sacramento cotidiano que aproxima homens e mulheres da realização plena.

Em um mundo de mercados implacáveis e crescentes desigualdades, Francisco desafiou poderosos com coragem e lucidez. Já em sua primeira exortação apostólica, Evangelii Gaudium, denunciou sem rodeios: "Esta economia mata". Para o Papa, o desemprego não era falha econômica casual, mas o resultado cruel de escolhas conscientes, que descartam vidas como objetos sem valor. Neste cenário, o trabalho não era apenas uma necessidade, mas o direito humano fundamental à existência digna.

A pandemia revelou mais ainda o quanto sua mensagem era urgente. Ao falar à Organização Internacional do Trabalho em 2021, Francisco defendeu que a dignidade laboral se constrói em "condições decentes, nascidas do diálogo coletivo". Ele via o sindicato como espaço vital, protegendo trabalhadores do isolamento e da exploração. Sem direitos coletivos, advertia, o trabalho perde seu papel civilizatório e se converte em mera sobrevivência.

Seus apelos ecoam diretamente nos tribunais brasileiros, onde se trava a batalha cotidiana contra a precarização. Em meio à "uberização" e contratos intermitentes, a palavra de Francisco oferece apoio moral às decisões judiciais que garantem vínculos trabalhistas justos e jornadas humanizadas. É uma luta incessante, onde cada sentença representa o esforço silencioso por justiça social.

Francisco compreendeu, ainda, que o trabalho humano é inseparável da questão ecológica. Em sua encíclica Laudate Deum (2023), advertiu sobre a insuficiência das respostas diante da crise climática. Denunciou, com firmeza, que são os trabalhadores os primeiros a sofrer com o descaso ambiental: agricultores explorados, mineradores expostos ao risco constante, entregadores invisíveis em suas motos vulneráveis. Sua voz instava à responsabilidade coletiva, à urgência de uma transição justa para economias sustentáveis, onde o trabalho humano e o cuidado com a Terra caminham juntos.

A solidariedade com migrantes e refugiados também permeou seu ministério. Diante da tragédia recorrente no Mediterrâneo, Francisco chamou de "instante de vergonha" o descaso global pelas vidas perdidas. Para ele, o trabalho não poderia ser privilégio, mas um direito garantido aos que cruzam fronteiras em busca de dignidade e sobrevivência. Esta mensagem encontra respaldo na Constituição brasileira, que assegura o acolhimento e a igualdade no mercado laboral aos estrangeiros, confirmando que Francisco pregava valores universais e profundamente humanos.

No campo jurídico brasileiro, decisões recentes do STF negam os ensinamentos de Francisco. O STF acaba de suspender a tramitação de todos os processos que julgam e que poderiam combater práticas ilegais como a "pejotização". Estes processos poderiam resgatar justamente o valor fundamental proclamado pelo pontífice: o trabalho digno não é negociável. Seriam pequenos avanços legais, inspirados talvez pela coragem daquele homem simples que ousou lembrar ao mundo o óbvio: nenhuma vida é descartável, nenhum trabalhador é peça substituível.

Com sua partida, Francisco nos deixa não apenas saudade, mas responsabilidade. Sua mensagem sobre o trabalho digno é um legado vivo, desafio cotidiano para juristas, líderes e cidadãos comuns. Se há uma homenagem verdadeira possível, ela reside na continuidade dessa luta, na defesa cotidiana dos direitos trabalhistas, no compromisso com a justiça social.

Que a voz de Francisco continue ecoando, como uma oração silenciosa nos tribunais, fábricas e campos, lembrando-nos sempre: é no trabalho justo e digno que repousa a esperança humana.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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