OPINIÃO

Gilmar errou feio. O problema nunca foi o excesso de justiça, é a falta de proteção – Por Álvaro Quintão

Com uma canetada, o ministro Gilmar Mendes paralisou milhares de processos trabalhistas que tratam da pejotização. Resultado: uma multidão de trabalhadores foi jogada no limbo jurídico

O ministro Gilmar Mendes.Créditos: Rosinei Coutinho/STF
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Com uma canetada, o ministro Gilmar Mendes paralisou milhares de processos trabalhistas que tratam da pejotização. Resultado: uma multidão de trabalhadores foi jogada no limbo jurídico. Quem tinha esperança de ver seu vínculo de emprego reconhecido — e com ele, direitos como férias, 13º, descanso semanal, INSS — agora precisa esperar. Esperar o Supremo "pensar". Enquanto isso, a vida não para. Mas a Justiça do Trabalho sim.

A justificativa do ministro? Aquela velha conhecida: “segurança jurídica”. Essa expressão virou figurino sob medida para o empresariado e roupa apertada demais para o trabalhador. Segundo Gilmar, a Justiça do Trabalho estaria ignorando precedentes do STF sobre terceirização. Mas aí é que está: não estamos falando de terceirização. Estamos falando de pejotização — que é outra história.

Pejotizar é transformar o trabalhador numa "empresa", mesmo quando ele cumpre jornada, recebe ordens e depende de um único contratante. Na prática? É fraude com CNPJ. Aquele velho truque do "presta serviço aí como PJ que a gente paga menos e se livra dos direitos".

A decisão de Gilmar parte de um erro básico: achar que o contrato formal vale mais que a realidade vivida. Como se um CNPJ apagasse a relação de emprego. Como se a “vontade” do trabalhador, mesmo pressionado pela necessidade, fosse suficiente pra legitimar qualquer coisa. O Direito do Trabalho sempre caminhou no sentido contrário: olha para os fatos, não para o teatro armado no papel.

Ao suspender os processos, Gilmar não silenciou só juízes. Silenciou histórias. Histórias reais de gente que batalhou anos como profissional da saúde sem carteira, professor de cursinho “prestador de serviço”, técnico de TI que batia ponto como qualquer empregado, mas recebia como PJ. Agora estão todos congelados, esperando. E quem depende do salário pra viver sabe: esperar é sofrer.

O STF promete uma “decisão com repercussão geral”. Mas, até lá, a vida do trabalhador segue em compasso de espera. Contas atrasam, planos travam, a Justiça fica em stand-by. E não se trata só de uma decisão isolada — é sintoma de algo maior: a tentativa de esvaziar a Justiça do Trabalho, de naturalizar a informalidade, de tratar emprego como custo — e não como um pacto social.

As reações vieram. Juristas como Jorge Luiz Souto Maior apontaram o risco real: se o STF validar essa lógica, qualquer contrato de prestação de serviço pode ser usado para esconder uma relação de emprego. E esconder, aqui, é o mesmo que negar direitos, apagar existências, empurrar o trabalhador pra invisibilidade.

Não se trata de saudosismo da carteira assinada. É sobre o que ela representa. Não é só um papel com carimbo. É a promessa de que o esforço de quem trabalha será reconhecido com o mínimo de dignidade. A pejotização, quando usada como disfarce, quebra essa promessa. Vende uma liberdade que, sem proteção, é armadilha.

O Supremo ainda pode corrigir o rumo. Pode reconhecer que novas formas de trabalho existem, sim, mas não podem virar camuflagem pra fraude. Pode — e deve — afirmar o papel da Justiça do Trabalho como guardiã da realidade dos fatos, não dos contratos de fachada. Pode reequilibrar essa balança.

Ainda há tempo. Mas o tempo, a gente sabe, pesa muito mais pra quem precisa de justiça do que pra quem se aproveita da demora.

Flexibilizar não é abandonar. Modernizar não é ignorar. E segurança jurídica, se não for pra todos, é só mais um nome chique pra desigualdade.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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