Nesses dias tudo muda, inclusive as notícias. Até as mais banais, como as de roubo de celular. Ninguém desconfiou daquele grupo de homens e mulheres fortes com fantasias coloridas de Power Rangers. Eles começaram a dançar e cantar até que algemaram um ladrão de telefones no meio da festa. Parecia brincadeira, que nada. Foram até a casa do suspeito e lá encontraram alguns milhares de reais e mais celulares roubados. Os super-heróis eram policiais disfarçados. “A casa caiu!”, gritaram.
Nenhuma outra época do ano é tão particular. São Paulo, que já foi chamada de túmulo do samba, mais por implicância do que pela falta de grandes músicos, é da folia. E esse ano o país inteiro ainda teve o Oscar para comemorar.
Você pode não ver graça, mas ignorar é impossível. A simplicidade dos foliões de rua, por exemplo, é encantadora. Um turbante dourado e a máscara da Fernanda Torres, a barba roxa e os óculos de gatinha. Uma sunga verde e nada mais.
Não faz tanto tempo, a segunda-feira do Momo era dia útil. Útil não sei pra quê, mas banco, açougue, oficina, tudo abria. Em São Paulo, o carnaval de rua era envergonhado, com poucos blocos. A maioria se divertia nos clubes ou no desfile das escolas de samba.
Nos dias de festa a gente via trabalhador sério com a gravata apertada e de olho no relógio. Hoje, a folia nos surpreende numa virada de esquina e o tal funcionário engravatado rebola de mini saia, com as coxas peludas de fora. Trabalho é depois da quarta e olhe lá.
Sentidos atentos, vejo, ouço e sinto o cheiro de mais um bloco. De todos os lados, foliões engrossam a multidão. Ambulantes aliviam nossa garganta e a própria conta bancária com cerveja a 20 reais no pix.
O único obstáculo é um caminhão de mudança. Grandalhão, quase fecha a visão de quem está do outro lado da rua. Quase, porque na altura dos pneus vejo passar tênis vermelhos, sandálias de lantejoulas e tornozelos brilhantes de glíter e suor. Alguns segundos de curiosidade e o grupo aparece do outro lado do caminhão. Pelo menos 15 pessoas vão em direção ao metrô. Sigo-lhes os passos.
Lá embaixo, uma dupla sem fantasia destoa da pequena multidão. Um menino e um senhor de mãos dadas.
O menino pede.
- Vamos pela escada rolante?
O homem de cabelos brancos aceita. E logo depois, o garoto, por volta dos seis anos, convida.
- Vamos pela esteira?
Novamente, o homem concorda com um sorriso de muitos dentes.
Por algum motivo misterioso, todas as crianças que conheço gostam de metrô, adoram escadas rolantes, vibram com esteiras. E pode apostar, o que um neto curte o avô ama com as vísceras.
Os dois pegam o trem e sentam.
- Vô posso coçar suas costas?
O avô levanta camiseta e vira de costas para o neto, que fica de pé. As mãos pequeninas passeiam por uma tatuagem colorida e algumas pintas.
- Vô, porque a gente tem sinal?
- É que nem cabelo branco, aparece com o tempo.
- Que nem pelo na orelha?
- Isso. Aííí Guilherme, coça um tico mais pra cima...mais pra baixo.
Guilherme é pura concentração.
- Tá bom, vô?
- Dá uma circuladinha.
Os dez dedos esfregam com carinho e firmeza as costas do avô.
- Assim?
- Tá ótimo. Quer brincar de forca?
O menino balança a cabeça e o avô pega um bloco na mochila. Desenha a forca e escolhe uma palavra de oito letras, que começa com C.
- Vô, é fácil ou difícil?
- Basta você olhar em volta que descobre na hora.
Guilherme encara o avô com olhar maroto.
- Acho que vou completar de primeira. Carnaval é com U ou com L?
Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter. O livro foi semifinalista do prêmio Jabuti 2024