OPINIÃO

Trotsky foi um gigante, mas não era infalível - Por Valerio Arcary

Leon Trotsky foi a principal liderança marxista que alertou de forma pioneira sobre o perigo de uma Segunda Guerra Mundial, se Hitler chegasse ao poder

Leon Trotsky no México com admiradores.Créditos: Wikipedia
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Os escritos de Trotsky sobre o fascismo represen­tam a única análise direta e desenvolvida do Estado Capitalista moderno, em toda a obra do marxismo clássico. Qualita­tivamente superiores a tudo o que Lenine produziu, tratam contudo de um regime que veio a verificar-se ser uma forma atípica do Estado burguês do século vinte, apesar da impor­tância histórica que foi o seu surgimento nessa altura. Para teorizar a especificidade do Estado fascista como o mais mortal inimigo de qualquer classe operária, teve Trotsky, obviamente, de fornecer elementos de uma contra-teoria do Estado demo­crático-burguês, para estabelecer o contraste entre os dois. Assim, existe um maior volume de análise nos seus escritos sobre a democracia burguesa do que nos dos seus predeces­sores(...)Em particular, aten­dendo a que os seus ensaios sobre a Alemanha sublinharam a imperativa necessidade de conquistar a peouena-burguesia para uma aliança com a classe operária (citando o exemplo do bloco contra Kornilov, na Russia), os seus ensaios sobre a Frente Popular em França deixam de parte as organizações tradicionais da pequena-burguesia local, o Partido Radical(...)A mesma transformação é evidente nos seus artigos sobre a Guerra Civil de Espanha embora acompanhada de outras características e algumas correções.1

Perry Anderson

Recorremos a analogias históricas com muito cuidado. O mundo de hoje não permite muitas comparações com mundo de cem anos atrás. Mas o laboratório da história é único que temos disponível para estimular nossa imaginação diante de uma realidade que se transforma acelerada e perigosamente.

Leon Trotsky foi a principal liderança marxista que alertou de forma pioneira sobre o perigo de uma Segunda Guerra Mundial, se Hitler chegasse ao poder. Antes dos principais líderes liberais democráticos, e em polêmica contra Stálin, previu que, se os nazistas viessem a vencer na Alemanha, seria uma questão de tempo para que Hitler invadisse a União Soviética.

O cálculo de Leon Trotsky era que a conquista da supremacia alemã no sistema internacional de Estados só seria possível de ser alcançada com a destruição da URSS, um domínio do Eixo Berlim/Roma/Toquio se estendendo do extremo oriente chinês até à Europa Ocidental, possivelemnte, com a imposição de relações de trabalho forçado de tipo pré-capitalista sobre os povos colonizados.

A imposição de uma derrota histórica aos trabalhadores na Alemanha era a condição para a construção da coesão social necessária para o projeto de guerra mundial. A guerra começou pela ocupação da Polônia, em função da necessidade do regime nazista de se fortalecer antes de enfrentar o inimigo principal. Stalin assinou o pacto Molotov/Ribbentrop argumentando que precisava ganhar tempo. Mas foi Hitler quem precisava de acumular forças na Europa, porque sabia que a guerra seria decidida na Rússia.

A defesa da Frente Única Operária, ou de esquerda, na luta contra o fascismo nos anos vinte e trinta do século passado, foi a ideia mais poderosa da estratégia que Trotsky defendeu. Esta estratégia respondia a um cálculo de que a situação era, dramaticamente, defensiva. A crise aberta depois de 1929 deixava o governo bonapartista em crise. Só uma unidade da classe trabalhadora poderia construir mobilizações para inverter a relação de forças. Mas tinha como preocupação derrotar o nazismo. E alertava que a linha de oposição de esquerda aos governos bonapartistas, que ajudava ao crescimento do PC, não favorecesse um caminho para os nazistas, que cresciam muito mais rapidamente, chegarem ao poder. A tática exigia calibrar as iniciativa para acumular forças e ganhar tempo.

Ele argumentou, à exaustão, diante do perigo de uma derrota histórica na Alemanha, o país no mundo em que a esquerda socialista era mais influente, a necessidade emergencial, insubstituível e incontornável, de uma Frente Única do Partido Comunista com os social-democratas do SPD, as duas maiores organizações da esquerda. Mas Trotsky defendeu, também, que a estratégia da Frente de Esquerda deveria usar táticas auxiliares, em especial, a unidade de ação com partidos que respondiam às pressões das camadas médias, ou de frações burguesas democráticas, numa Alemanha em que a pequena propriedade ainda era imensa, nas cidades e nos interiores agrários diante da barbárie nazista.

Ou seja, Trotsky era consciente que somente a unidade da social democracia, partido moderado e reformista, mas majoritário entre os trabalhadores, e o partido comunista, a organização revolucionária, não era o bastante. Essa unidade na ação teria como plataforma um denominador comum mais recuado: impedir o nazismo de conquistar o poder, portanto, um programa de defesa das liberdades democráticas do regime da República de Weimar. O giro do partido comunista durante o denominado Terceiro Período pela Internacional Comunista, era insurrecional, apostando na iminência da luta imediata pelo poder. Seus alertas foram ignorados, e a tragédia se consumou.

Prevaleceu no Partido Comunista da Alemanha uma orientação sectária e ultra-esquerdista, que pretendia combater, simultaneamente, o nazismo e a socialdemocracia, apostando numa linha insurrecional. A acusação de que o SPD seria um partido “social-fascista”, socialismo nas palavras e fascismo nos atos, foi uma das maiores deformações ideológicas do estalinismo, nivelando os reformistas com os nazistas. Uma orientação ultraesquerdista autoproclamatória provocou a divisão da classe trabalhadora e seus aliados nas classes populares e abriu, irremediavelmente, uma fratura na resistência antifascista. A subestimação do perigo terminal que Hitler representava foi fatal.

A questão permanece atual, já que envolve a discussão sobre a unidade na ação com as frações burguesas em torno da defesa, quando ameaçados, mas tambem da conquista de espaços e direitos democráticos, ou seja a utilisação de consignas e reivindicações democráticas contra os limites da república democrático burguesa. Como este tema é vital, diante da ofensiva mundial de uma corrente neofascista, nesta terceira década do sécuculo XXI, vale a pena conferir o balanço crítico de Perry Anderson tomando, como exemplo histórico, a comparação da politica de Trotsky contra o nazismo na Alemanha antes de 1933, e a Segunda Guerra mundial:

Depois, no começo da Segunda Guerra Mundial, Trotsky condenou o conflito internacional como sendo uma mera repetição inter-imperia­lista da Primeira Guerra Mundial, na qual a classe operária não deveria optar por qualquer dos lados – apesar do carácter fascista de um e do carácter democrático-burguês do outro. Justificou-se esta posição pela afirmação de que, fosse como fosse, já que todo o mundo imperialista se deteriorava, enca­minhando-se para uma situação de desastre económico nos anos trinta, a distinção entre as duas formas de Estado_capi­talista tinha deixado de ter importância prática para a classe operária. Os erros desta evolução teórica parecem evidentes. Os próprios primeiros escritos de Trotsky sobre a Alemanha constituem a melhor refutação dos seus escritos posteriores sobre a Guerra. Obviamente, uma vez que a URSS foi atacada pela Alemanha, Trotsky teria alterado a sua posição sobre o conflito mundial. Mas o catastrofismo económico que parece ter originado os erros da sua fase final foi uma constante da Terceira InternacionalL após Leníne, e teve a sua autoridade ultima, como vimos, em Marx. (grifo nosso)1.

Perry Anderson tem razão. A posição de Trotsky mudou depois da vitória de Hitler. Trotsky não era infalível e, em função de muitos fatores, durante a revolução espanhola, subestimou a necessidade de uma aliança mais ampla em defesa da República, e terminou rompendo relações com o POUM de Andreu Nin. Depois, quando da greve geral francesa durante do governo de Leon Blum e, finalmente quando da precipitação da Segunda Guerra Mundial, sobreestimou as possibilidades revolucionárias, e subestimou a necessidade de aproveitar fraturas nas camadas médias e setores burgueses.

Moreno considerava, também, ao final de sua vida nos anos oitenta, que a Segunda Guerra Mundial não deveria ser reduzida a um enfrentamento inter-imperialista. Foi uma simultaneidade de várias guerras: uma guerra contrarrevolucionária contra a URSS, uma guerra nacional na China contra o Japão, uma guerra nacional na Grécia contra a ocupação germânica, e uma guerra mundial do fascismo contra os regimes democrático-liberais, entre dois regimes de dominação. E na luta contra a ditadura militar na Argentina considerou necessário revisar a letra das teses sobre a revolução permanente elaborada por Trotsky:

Aqui temos um problema político grave, tremendo (...) parece que o fato da contrarrevolução capitalista recolocou a necessidade de que deve que haver uma revolução democrática. E que ignorar que o que se apresenta nos países adiantados onde há regimes contrarrevolucionários, também, é una revolução democrática, seria maximalismo, é tão grave como ignorar a revolução democrático-burguesa nos países atrasados. (...) Se é correto, há que mudar toda a formulação das Teses da Revolução Permanente. Me dá a impressão de que é correto e de que Trotsky apontava nessa direção. (…) Se é correto muda toda nossa estratégia com respeito aos partidos oportunistas e, em boa medida, a respeito dos partidos burgueses que se oponham ao régime contrarrevolucionário. Como um passo para a revolução socialista, nós estamos a favor de que vença um régime burguês totalmente distinto ao régime contrarrevolucionário. Assim como estávamos a favor da revolução democrático-burguesa, e dizíamos que era distinta da outra, a revolução socialista, que havia que fazê-la, que havia que derrubar na Rússia o Czar, que era una tarefa democrático-burguesa específica, há que discutir se não temos agora também uma tarefa democrático-burguesa específica, que é derrubar o regime contrarrevolucionário para que venha, ainda que seja um régime burguês.1

Ou seja, Moreno avançou na conclusão de que na luta contra a ditadura militar não bastava defender uma Frente de Esquerda. E se apoiava em um balanço histórico:

A guerra civil espanhola demonstrou até que grau o regime democra´tico-burguês era antagônico con o fascismo, não somente a classe trabalhadora e suas organizacões. A II Guerra Mundial apresenta, como mínimo, elementos similares. Sem desenvolver o tema, cremos que é preciso estudar seriamente se no foi um projeto de estender a contrarrevolução fascista imperialista a todo o mundo derrotando, principalmente, a União Soviética, mas também aos regimes democra´tico-burgueses europeus e norte-americano. Isto não quer dizer que a Segunda Guerra Mundial não tenha tido também um profundo conteúdo de luta inter-imperialista. O que dizemos é que é necessário precisar bem, assim como na guerra civil espanhola, qual foi o fator determinante. Foi a luta do regime fascista, essencialmente, contra a URSS, mas também contra a democracia burguesa? Ou foi o fator econômico, a disputa entre imperialismos pelo controle do mercado mundial?3

Ser herdeiro do melhor da tradição marxista-revolucionário não deve ser repetir aquilo que os gigantes que vieram antes de nós, escreveram. Os argumentos de autoridade não podem substituir a análise concreta da situação em que estamos imersos. Precisaremos de muito rigor, mas também, imaginação revolucionária.

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1 ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto, Afrontamento, 1976, p.153/4)

2 MORENO, Nahuel. Escuela de cuadros: Argentina 1984. chromeextension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://nahuelmoreno.org/escritos/escuela-de-cuadros-argentina-1984.pdf Consulta em 14/03/2025.

3 Moreno, Nahuel. Revoluções do século XX. https://www.marxists.org/portugues/moreno/1984/mes/revolucoes.htm Consulta em 14/03/2025

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