OPINIÃO

Pablo Marçal e a lumpemburguesia – Por Valerio Arcary

A naturalização da candidatura de Marçal em São Paulo é algo assustador, mas não somente porque se trata de um fascista

Créditos: Reprodução/TV Cultura
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Lobo velho não cai em armadilha. Lobo não come lobo.

Louca é a ovelha que confia no lobo.

Provérbios populares portugueses.

A naturalização da candidatura de Pablo Marçal em São Paulo é algo assustador. Não somente porque se trata de um fascista, mas porque é uma aberração a tolerância das instituições do regime, a começar pela Justiça Eleitoral e a mídia comercial, com seus sucessivos crimes políticos. A impunidade é absurda. Pablo Marçal não é normal. Os insultos, as injúrias, as mentiras, as provocações são grotescas. A teoria de conspiração – o consórcio comunista – é indivisível do projeto hiperliberal autoritário. Marçal é inimigo de todas as pequenas, mas valiosas conquistas sociais dos últimos 35 anos, desde o fim da ditadura. Marçal defende privatizações sem limites, despreza o Bolsa Família, desdenha do SUS, denuncia a Previdência, desqualifica a educação pública.

Marçal é um lumpen. Trata-se uma classificação, não é um xingamento. Não é tampouco um elogio, nem uma observação neutra. A lumpenização atingiu, em diferentes graus, todas as classes sociais. Existe uma lumpemburguesia no Brasil. Marçal é a expressão de um grupo social que explora oportunidades de ganhar dinheiro, vertiginosamente, rápido, explorando as inúmeras brechas jurídicas existentes.

Não querem pagar impostos, não querem regras que estabeleçam limites, não aceitam regulações, não têm escrúpulos. São lumpens as frações do agronegócio que fazem a expansão da fronteira agrícola com queimadas. Madeireiras, garimpos, mineração são atividades em que a lumpemburguesia floresce. O emprego de mão de obra em condições análogas à da escravidão. Os exemplos são inúmeros.

Lumpemproletariado ou lumpesinato é um conceito do século XIX que pode ser traduzido do alemão, ao pé da letra, como "homem trapo" e se refere a uma parcela da população ultrapauperizada que vive degradada e segregada na sociedade: os “desesperados”. Mas no Brasil do século XXI podemos usar também o conceito de lumpemburguesia sugerido por Ernest Mandel há 50 anos, recuperando do esquecimento a referência de Marx no “18 de Brumário”.

Lumpesinato era entendido como um grupo social reduzido a condições mínimas de sobrevivência, ou até miséria “biológica”, que vive em favelas ou nos bairros populares mais pobres em atividades irregulares ou intermitentes. O lumpen está excluído em espaços econômicos informais ou ilegais, às vezes, até antissociais, o que não é o mesmo. Não são sinônimos: há atividades consideradas ilegais que não são antissociais. Não é nem verdade nem justo que todos os lumpens sejam bandidos. Menos ainda que os extremamente pobres que estão na informalidade sejam lumpens. Muitas pessoas escapam da condição lumpen, enquanto outros caem nela.

Marx identificava o lumpen, em um primeiro nível de abstração, como fenômeno, não como uma fração de classe. O lumpen não seria, portanto, uma fração do proletariado. Existem, além das frações de classe, grupos sociais.

Grupo social é um coletivo em alguma medida homogêneo que tem uma existência com autonomia relativa em relação às três grandes classes das sociedades contemporâneas: os capitalistas, a classe média e os trabalhadores. São, por exemplo, os religiosos profissionais, os criminosos ou os policiais, entre outros. O lumpen é um fenômeno no sentido de que é um grupo social instável que conhece flutuações, ou seja, uma manifestação inconstante e variável, que pode ter determinações maiores ou menores.

O principal sentido do conceito lumpesinato é que chama a atenção para o fato de que, nas condições de desagregação social da sociedade capitalista, um grande número de pessoas pode formar uma massa excluída e “desclassada”.

Marçal lidera uma fração de classe burguesa que radicalizou na extrema direita. Desperta simpatia nas camadas médias como ficou claro pela audiência de pelo menos dois terços dos que foram á Paulista no último 7 de setembro. Mas Marçal procura a representação, também, desta camada mais desesperada atraída pela promessa de ascensão social pelos “negócios”, o atalho da prosperidade. Dialoga com os desesperados.

Os “sem-nada”, em primeiro lugar, são muitos e heterogêneos. Nos bairros mais pobres e nas favelas das grandes cidades, se inclui, apressadamente, nessa categoria sectores sociais muito diferentes. Entre os mais pobres estão tanto franjas empobrecidas do proletariado, quanto o lumpen. Classe trabalhadora e lumpen convivem nos mesmos bairros, até nas mesmas famílias, mas com hostilidades mútuas.

As dinâmicas políticas destes dois componentes da massa excluída e desorganizada são, no entanto, muito diferentes. Parece muito difícil que a massa lumpen, embora cada vez mais numerosas, na medida em que a estagnação econômica da última década vitimizou batalhões inteiros das classes trabalhadoras, possa se deslocar, politicamente, de forma mais ou menos homogênea para o campo de luta da classe operária. Haverá divisões.