Desde que a Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou 34 pessoas por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e organização criminosa, os acusados vêm apresentando diversas estratégias para rebater as acusações. Entre elas, duas chamam atenção: a reinterpretação de documentos e declarações como meros exercícios acadêmicos e a tentativa de justificar ações políticas extremas como explosões emocionais desprovidas de real intenção golpista. Essas estratégias fazem parte de uma abordagem mais ampla para questionar a validade das provas e das investigações, tentando criar um cenário de dúvidas sobre as reais intenções dos envolvidos.
O documento que virou estudo acadêmico
Entre as provas apresentadas pela PGR, um dos documentos mais emblemáticos encontrados durante as investigações foi a chamada “Op Luneta”, um planejamento detalhado que, segundo os procuradores, consistia em diretrizes para um golpe de Estado. O tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, um dos denunciados, contestou essa acusação e, em sua defesa, afirmou que o material encontrado não passava de um “exercício acadêmico”, destinado a explorar cenários hipotéticos dentro dos protocolos doutrinários das Forças Armadas.
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O argumento da defesa se baseia no fato de que a análise de cenários políticos e militares é um procedimento comum nas forças armadas de diversos países. Lima sustentou que o documento se limitava a uma reflexão teórica sobre possíveis desdobramentos de uma crise institucional e que não representava um plano real de golpe. A defesa ainda argumentou que o documento foi retirado de contexto e que a acusação distorceu sua natureza.
No entanto, a PGR vê a situação de forma diferente. Os investigadores apontam que o teor do documento ultrapassa o campo da análise teórica e apresenta passos concretos para contestar e reverter o resultado eleitoral, envolvendo a movimentação de tropas, a decretação de estado de sítio e medidas para enfraquecer instituições democráticas. Além disso, o fato de que documentos similares foram encontrados com outros acusados reforça a tese de que o material não era apenas um exercício intelectual, mas parte de um planejamento articulado.
A descoberta do documento “Op Luneta” é apenas um dos exemplos de como materiais comprometedores foram posteriormente reinterpretados como análises inofensivas. Essa estratégia de defesa visa minar a credibilidade das provas e deslegitimar a acusação de que houve um plano coordenado para um golpe.
O golpe emocional: quando uma conspiração vira descontrole momentâneo
Outro caso emblemático é o do coronel Bernardo Romão Corrêa Neto, acusado de tentar convencer o Alto Comando do Exército a apoiar um golpe. Em sua defesa, ele apresentou um argumento surpreendente: afirmou que tudo não passou de uma “bravata” e de um momento de “destempero emocional”.
A defesa de Corrêa Neto sustenta que suas declarações e ações estavam fora de contexto e que, embora tenha participado de reuniões e feito declarações inflamadas, essas falas não tinham peso real. Segundo sua argumentação, ele teria "supervalorizado sua posição" e agido sob forte carga emocional, o que teria levado a discursos exaltados que não representavam um risco concreto.
A tese do destempero emocional já foi utilizada em outros contextos políticos, especialmente em casos de radicalização verbal que posteriormente são minimizados como atos isolados. Entretanto, as investigações da Polícia Federal indicam que a atuação de Corrêa Neto foi mais do que um simples momento de descontrole. Segundo a PGR, ele participou ativamente de reuniões estratégicas e teve um papel relevante no planejamento de medidas para pressionar oficiais superiores a aderirem ao golpe.
Os investigadores destacam que Corrêa Neto organizou reuniões, selecionou militares das forças especiais e ajudou a estruturar uma carta que seria utilizada para pressionar o comando do Exército. Essas ações demonstram, segundo a PGR, que ele teve um papel ativo no plano conspiratório e que sua justificativa de destempero emocional não se sustenta diante das provas coletadas.
A estratégia jurídica por trás das justificativas
Tanto a tese do estudo acadêmico quanto a da bravata emocional fazem parte de um esforço coordenado das defesas para descaracterizar os elementos centrais da denúncia da PGR. Ao transformar um plano de golpe em um “exercício acadêmico”, busca-se deslegitimar a materialidade da prova, sustentando que não há crime sem um plano concreto. Da mesma forma, ao alegar que as movimentações políticas foram fruto de emoções exacerbadas, tenta-se afastar a premeditação e a gravidade dos atos.
Essas estratégias dialogam com outras linhas de defesa adotadas pelos acusados, como:
- Negação total da participação nos atos – Como o general Nilton Rodrigues, que alegou estar fora do país durante os principais momentos da conspiração.
- Desqualificação das provas – Alegação de que as investigações foram manipuladas e as provas descontextualizadas.
- Cerceamento de defesa – Acusados, como Walter Braga Netto, afirmam que não tiveram acesso integral às provas e que há um viés acusatório na condução do caso.
Além disso, algumas defesas têm argumentado que as ações eram apenas conjecturas políticas e que nenhuma medida concreta foi tomada para efetivar a conspiração. Essa estratégia já foi utilizada em casos internacionais envolvendo tentativas de golpe, onde réus tentaram minimizar suas responsabilidades alegando que as discussões nunca ultrapassaram o campo teórico.
Pode um “ensaio acadêmico” e um “destempero” ameaçar a democracia?
O que essas estratégias de defesa revelam é a tentativa de transformar uma articulação golpista em uma sequência de eventos desconexos e desprovidos de intenção real. No entanto, as investigações apontam que as movimentações foram coordenadas e envolveram militares e civis em papéis estratégicos. Os argumentos apresentados pelas defesas reforçam uma disputa jurídica e política que transcende os tribunais e se projeta para o debate público sobre os limites da responsabilização penal por crimes contra a democracia.
Se a tese do “golpe teórico” e do “destempero emocional” forem aceitas, a mensagem enviada para futuras ameaças à ordem democrática poderá ser ambígua. Por outro lado, caso o Supremo Tribunal Federal rejeite essas justificativas e considere que houve intenção real na conspiração, o julgamento poderá estabelecer um marco na jurisprudência brasileira sobre crimes contra o Estado Democrático de Direito.
A questão que resta é: até que ponto essas narrativas serão aceitas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal? O julgamento dos acusados definirá se essas justificativas serão vistas como legítimas ou se, diante das provas apresentadas, a tese de que havia um plano articulado para romper a ordem democrática prevalecerá.