CRÔNICA

De novo na cozinha – Por Esther Rapoport

A história do sal vai longe, na História e na cozinha – um dos melhores lugares, em qualquer casa, para se contar histórias

Uma Tabaccheria na Itália.Créditos: Flickr Howard Stanbury/ @stanbury
Escrito en OPINIÃO el

Andando pela cidade de Torino, minha atenção foi capturada pela placa da Tabaccheria que ficava ao lado do posto de gasolina.

Não sei se vocês sabem o que é uma “Tabaccheria”, eu explico. 

Como o nome já sinaliza, é onde se vende tabaco, ou seja, cigarros. Vende também os selos oficiais que devemos colocar nas cartas e contratos oficiais, vende bilhete do ônibus e jogos de loteria, todas as transações do dia-a-dia que pagam uma taxa especial para o governo ou são controladas pelo governo. Mas a placa me chamou a atenção porque, pela primeira vez, li atentamente e percebi uma palavra a mais .... SALI ....E TABACCHI.

Achei que não tinha compreendido direito e passei a observar todas as placas de tabaccherias que existiam no caminho e todas diziam a mesma coisa: Sali e Tabacchi. Sal e tabaco?? Por que o sal?? Fui pesquisar! 

Primeira descoberta: a “tabaccheria” é um posto de venda de produtos especiais que fazem parte da lista de “monopólio” do Estado. Só pode ter uma tabaccheria quem passa por uma seleção especial para ter a autorização do Estado de abrir uma lojinha dessas. Não chega a ser um cartório brasileiro, que é hereditário, mas aqui também tem que ter amigos...

Descobri que o sal estava nessa lista de monopólio estatal desde a antiguidade, tipo ano 500 A.C., e nunca perdeu importância por vários motivos: as especificidades da sua produção, a importância direta na nossa dieta e a importância na conservação dos alimentos. 

Vamos para a História ... ebaaaa....

Até o aparecimento dos refrigeradores, os alimentos eram conservados em sal, para se consumir durante o ano todo. E olha a lista de comidas a serem preservadas: prosciuto cruddo, salami e outros embutidos, parmeggiano e demais queijos, carnes, peixes e legumes, tudo conservado em sal, salmoura e outras técnicas baseadas na presença deste mineral. 

Pela sua importância, o sal era um monopólio do Estado, que controlava a produção e cobrava tributos especiais sobre sua comercialização. De onde vocês acham que vem a palavra “salário” como forma de pagamento? É daí mesmo, pelo valor deste composto químico no nosso metabolismo, se tornou parte do pagamento aos soldados na Roma Imperial, que queria garantir a saúde de seus exércitos.

Resumindo, então, o sal era tributado de forma especial e só podia ser vendido em lojas controladas pelo Estado. E não faz muito tempo que essa regra caiu e o sal passou a ocupar uma prateleira no supermercado. Até o início do século XX, era ainda preciso ir ao tabacchaio para comprá-lo.

A nossa relação com o sal já deu muito pano para manga, numa longa e nem sempre pacífica história. Por exemplo, em 1930, na Índia, em protesto contra os impostos aplicados pelo colonizador, os britânicos, que faziam os indianos pagarem uma taxa para consumirem o seu próprio sal, Gandhi liderou uma caminhada que ficou conhecida como "A Marcha das 200 Milhas" para extrair sal do mar.

Na França do Antigo Regime existia um imposto chamado de GABELA e cada francês, maior de 8 anos, devia pagar por um suposto consumo de sete quilos de sal a um preço fixo estipulado pelo Rei. Era o “sel du devoir” e foi para pauta da Assembleia Nacional francesa em 1790.

A história do sal vai longe, na História e na cozinha – um dos melhores lugares, em qualquer casa, para se contar histórias... Então vou contar mais uma, na verdade uma descoberta que fiz, sempre sentada à mesa da cozinha. Quero comentar sobre a importância do Facebook na arqueologia histórico-gastronômica familiar.

Em um sábado qualquer postei uma foto feita em Budapest enquanto jantava em um restaurante de comida judaica e relembrava minha infância tomando uma sopa com kneidlach, como aquela que minha mãe fazia. Kneidlach, que se pronuncia: quineidelerr, é uma bolinha feita com a farinha de matze, o pão ázimo que os judeus comem especialmente durante a pascoa (pesach), produzido sem fermento.

Até aqui só contei novidade para quem não conhece nada da culinária judaica. Mas ao postar a foto, comecei a receber respostas interessantíssimas de amigas não judias que conheciam estas bolinhas e me ensinaram que quando se trata de cultura, porque a gastronomia é um aspecto fundamental da cultura de um povo, nada é estanque, tudo se transmite e tanta coisa se mistura.

Vejam vocês, a Liliana, filha de italianos, escreveu que conhecia as tais bolinhas que, no norte da Itália, se chama canéderli. Mas porque existe no norte da Itália? E com esse nome, que é uma adaptação visível do nosso kneidlach? Vou explicar, mas espera um pouco porque a Marli, que já morou na Alemanha, também respondeu ao meu post e me contou que ela conhecia as minhas bolinhas como um prato austríaco, chamado Knödel.  

Fui procurar o tal Knödel e descobri que era muito comum em toda a região do Leste europeu: desde a Alemanha, Áustria e Hungria, a antiga Tchecoslováquia e também na Polônia, bem ali, exatamente no território onde se encontravam os judeus asquenazi, aqueles que devem ter adaptado um prato local às regras judaicas de alimentação, mudando a farinha, retirando os recheios que os austríacos costumavam incluir na receita e “yidishizando” o nome do prato.  

Voltemos a Itália, e aí vai a explicação para Lea, cuja família também vem do norte da península, e que me escreveu que não conhecia este prato. Vamos olhar para o contexto histórico: Lombardia e Veneto foram parte do Império austro-húngaro até a unificação da Itália. Vários pratos da tradição austríaca foram incorporados na culinária local como, por exemplo, o “bife a milanesa”, que nada mais é do que o schnitzel austríaco, e provavelmente o canéderli da Lili só tem a ver com o Kneidlach da minha mãe porque antes foi com o Knödel da Marli. 

Viu? Aprender é muito mais legal quando se faz em colaboração!!

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

Reporte Error
Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar