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"Mania de Você" vale a pena ou não? – Por Filippo Pitanga

Confiram as primeiras reflexões sobre a novela das nove, da Globo, que estreia com a pior audiência para um primeiro capítulo. Mas e a excelência em dramaturgia global, está lá?

Trecho da novela Mania de Você, da TV Globo.Créditos: TV Globo/Reprodução
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Toda arte é subjetiva e fica a gosto do freguês. Independentemente, há sim padrões estéticos e personalidade correspondente à cada linguagem de um artista passível de maior ou menor identificação. Há aqueles que preferem dramaturgias de época, outros mais modernas; românticas ou dramáticas; de ação ou suspense; de realismo mágico ou de denúncia à violência contemporânea.

A questão é que a maioria das novelas já se dá num imaginário sudestino (ok, é a localização do Projac), mas outras territorialidades podem ser reproduzidas em estúdio sem encarecer, mesmo que perca um pouco o elã em não ser filmado in loco. E não é todo dia que podemos sonhar com imaginários mais oníricos, afora da violência que já vemos nos jornais todo dia...

Cada autor possui sua marca. Benedito Ruy Barbosa e sua família gostam muito dos folclores regionais do interior. Já João Emanuel Carneiro é um autor da crítica social contemporânea. Ele traz à tona o melhor e (bastante) o pior do ser humano nas tragédias (e sátiras) do dia a dia. Não que o perfil de quem faria de tudo pra se dar bem na vida não exista no Brasil, ainda mais na era das redes e influenciadores, pra quem isso é ser bem-sucedido (sem pensar no alimento pra alma ou etc). Amo "Avenida Brasil" do Carneiro, e gosto muito de "Todas as Flores" (a primeira metade, pelo menos), com vilãs inesquecíveis; blocos liberados de 5 capítulos na Globoplay com tema e desenvolvimento de núcleos e personagens bem distribuídos em geral; ainda mais na estreia de uma novela feita exclusivamente para o respectivo streaming.

Porém, como tudo tem dois lados, "Mania de Você" já mostra que a direção e fotografia podem sim embelezar a feiura humana (o que é um elogio e uma crítica), marcas de obras de Carneiro, principalmente quando perde o equilíbrio entre a denúncia e a exotificação do sofrimento (e da pobreza). A entrada na barca de Niterói é linda, com luz solar estourada, desfocada, entre o proletariado e artistas mambembes. O sofrimento já está lá, belamente interpretado, mesmo sem fala, pela atriz/personagem NÃO CREDITADA (nem no final!) dando à luz a Viola (Gabz) que será achada por Marcel (Bukassa Kabengele). Ambos dão credibilidade a uma cena absurda, onde a plasticidade oculta buracos desnecessários.

Apesar de toda esta eficiência dos atores e da fotografia em acertar um prólogo "a toque de caixa", apressando a trama para chegar no núcleo rico (com bem mais tempo de tela e diálogos) para o nascimento da outra criança que será emparelhada, no caso, Luma (Agatha Moreira), justamente esta desproporção e beleza na crueldade parecem perverter o sentido da dramaturgia no sentido propriamente de introdução ao que aquelas cenas serviam. E, pior, no sentido de representação da realidade: a vitimização exotificada do sofrimento do trabalhador parece sempre servir ao alpinismo social de forma muito irresistível (não obstante que para gerar um thriller ou suspense).

As novelas neste sentido dão mais certo (como "Avenida Brasil") quando as diferenças de classe estão dentro da chave do absurdo, do non sense, como a criança no lixão, que, apesar de possível na realidade, era evidentemente uma exacerbação, uma sátira. A cena da barca não é uma sátira nem se pretende ser. E, apesar da boa movimentação na narrativa da novela, os 3 saltos temporais declarados, com o parto das protagonistas, a "adolescência" (Agatha Moreira tem 32 anos interpretando 19!) e o retorno da faculdade de gastronomia de Luma, mesmo com a intenção de agilizar a trama, podem, mesmo sem querer, prejudicar imensamente o desenvolvimento de personagens...

Ainda assim, as imagens escolhidas para estampar esse texto, de plano, foram com a gigante Adriana Esteves como a vilã Mércia, e a mão do colega de antagonismo na novela, Molina (Rodrigo Lombardi) num gestual de carinho e dominação ao mesmo tempo sob o olhar sadomasoquista da relação submissa e ao mesmo tempo mutuamente dependente que ambos possuem, mas cuja expressão de Esteves é quem melhor traduz, e dá o MELHOR frame do primeiro capítulo. Ela dá a maior credibilidade possível ali até agora, afinal, é uma atriz capaz e conhecedora da dramaturgia do autor até a raiz (num potencial de amor e ódio sedutores como uma dupla à la Game of Thrones e o romance incestuoso de Cersei e Jaime Lannister). Vide a suspensão total da descrença nas cenas do hospital, cheia de "Deus ex machina" (técnica facilitadora de roteiro, quando cria soluções mágicas, resolvendo algo sem a preparação para aquilo ser crível), e típica de novela, mas cujos olhares e gestual azeitados entre os vilões distraíram os espectadores o suficiente para que não parecesse TÃO absurda quanto foi.

O frame de Esteves que estampa esse texto (bem como os planos-detalhes que o acompanham), ao menos sob a perspectiva crítica, é mais promissor do que toda a fotografia bela da natureza, das ondas do tempo nos créditos iniciais e da casa do vilão em Angra dos Reis, ou mesmo da beleza praiana dos protagonistas. E olha que acredito no potencial destes, uma vez que Nicolas Prattes e Agatha Moreira já demonstraram excelentes personagens em folhetins anteriores, e Gabz e Chay podem surpreender (mesmo com toda a cena de violência do tráfico como clichê tão usado, sem falar do equivocadíssimo flerte de romance entre os respectivos protagonistas logo após a horrenda tentativa de abuso contra ela). Porém, nem vou falar, então, do desperdício de Simone Spoladore e Fábio Assunção, só pra acabar por aqui mesmo: a primeira, porque vive sendo desperdiçada; e, o segundo, que anda em alta noutros trabalhos, porque leva a crer que exista alguma mínima chance de reviravolta em estar vivo e se vingar na segunda parte... será? Reviravoltas absurdas são esperadas aqui...

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.