O caso em torno da boxeadora argelina Imane Khelif, que se tornou alvo de um ataque massivo por causa de uma fake news que alegava que ela não seria uma mulher cis, mas sim transexual, é didático para compreendermos questões que vão além do mundo dos esportes e que estão presentes na formação das sociedades modernas, principalmente naquelas frutos da colonização.
Antes de tudo, deve-se destacar que, mesmo com os pareceres do Comitê Internacional Olímpico (COI) e do Comitê Olímpico da Argélia afirmando que Imane Khelif é uma mulher cis, é preciso se revoltar com o caráter absurdo de toda essa celeuma. O absurdo aqui reside no caráter colonial da questão e na tirania da normalidade, duas camadas que andam juntas.
Mas como assim colonização e normalidade andam juntas? Com o processo de colonização e sua radicalização a partir do achamento das Américas, todo um saber sobre corpos, raças e normalidades foi estabelecido. Foi nesse período que se definiu o parâmetro de “humano”, “homem”, “mulher”, “selvagem” e “normal”. Esse ideário foi desenvolvido e aperfeiçoado ao longo dos séculos.
A partir do ideário colonial, foram construídas - e ainda seguem em construção - tecnologias que visam determinar os padrões de normalidade sobre os corpos dos homens e das mulheres. Esses saberes partem do parâmetro eurocêntrico para designar a formação biológica dos seres. Ou seja, todos devem cumprir o padrão branco europeu, seja na biologia, seja na forma de vida em sociedade.
É importante destacar que esses saberes normativos e coloniais se desenvolvem não para se modificarem e se transformarem, mas para permanecerem como sempre foram, ou seja, trata-se de um saber monolítico, fechado para mudanças e profundamente violento diante de questionamentos.
Note que sempre serão os corpos não brancos e colonizados os alvos da tirania das normalidades. Corpos que nunca serão encaixados no padrão das normalidades justamente por causa de suas respectivas origens geográficas.
Além do caráter geográfico-colonial, temos também a esfera da tirania das normalidades sexual, que opera tanto fora quanto dentro das fronteiras. A tirania das normalidades possui uma dupla camada: a geográfica-colonial, que tem por objetivo manter os povos colonizados petrificados e eternamente selvagens; e a sexual, que opera dentro das nações, tanto em sociedades que foram colônias quanto naquelas que colonizaram, já que a norma sexual foi uma das ferramentas da barbárie colonial.
Mesmo com a afirmação contínua de que Imane Khalef é uma mulher cis, o problema persiste: o reforço da “anormalidade” das pessoas transexuais, que são excluídas das competições esportivas.
Estamos diante de um paradoxo originado nas tecnologias coloniais, que germinaram a tirania das normalidades: de um lado, extremistas gritando “é um homem”; do outro, “é uma mulher, não é trans”. Ou seja, o embate entre normal e anormal, que alicerça não apenas o mundo dos esportes, mas a vida como um todo.
Portanto, o caso de Imane Khelif é didático ao mostrar o quanto ainda vivemos em um mundo profundamente marcado por tecnologias coloniais e tiranias da normalidade, onde pessoas precisam provar que são... pessoas e dignas de cidadania e tudo o que isso acarreta.
Também serviu para, mais uma vez, entendermos que temos um exército de pessoas que não são consideradas humanas, que vivem sob a vigilância e controle da régua da tirania das normalidades e da “humanidade europeia”. Com elas, pode-se fazer qualquer coisa, até mesmo matar, para que o reino das normalidades e do caráter “humano” estabelecido pela colonização permaneça intacto.